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Aliança católicos-evangélicos não é mais para impedir avanços, mas para impor retrocessos, diz pesquisadora – Saúde – CartaCapital

Aliança católicos-evangélicos não é mais para impedir avanços, mas para impor retrocessos, diz pesquisadora – Saúde – CartaCapital


A articulação para emplacar na Câmara o projeto de lei que equipara o aborto (legal) após 22 semanas de gestação ao homicídio simboliza uma nova etapa na aliança de figuras católicas e evangélicas, não mais para impedir avanços sexuais e reprodutivos, mas para impor retrocessos. A avaliação é de Lilian Sales, professora de Antropologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora do projeto Pluralismo Religioso e Diversidade no Brasil Pós-Constituinte, do Cebrap.

À frente da proposta está o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), líder evangélico na Assembleia de Deus. Outros parlamentares, porém, são signatários, entre eles Cezinha de Madureira (PSD/SP) — este, questionado em entrevista à GloboNews sobre a reação popular ao texto, disse ter “Deus na vida”.

Engana-se, contudo, quem acredita que a extrema-direita organizada se limita aos evangélicos. A pesquisadora alerta para um movimento na igreja católica em franca ascensão no Brasil. “É silencioso, mas já é forte.”

Na prática, o projeto de lei em tramitação prevê que a pena para a mulher que interromper a gravidez seja mais dura que aquela a ser imposta ao homem que a estuprou.

Além disso, nos últimos dias, entidades têm advertido para o fato de que a proposta impactaria em especial as meninas. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o estupro no Brasil é um crime essencialmente cometido contra crianças e garotas: 61,4% das vítimas têm no máximo 13 anos e mais de 80% são do sexo feminino.

A partir de uma manobra de Arthur Lira (PP-AL) e com uma votação-relâmpago, a Câmara aprovou na quarta-feira 12 um requerimento para tramitação do PL em regime de urgência. Agora, a empreitada de Sóstenes e companhia não tem mais de passar pelas comissões temáticas e pode chegar diretamente chegar ao plenário.

“Quem mais vai sofrer com esse projeto de lei são as crianças, as meninas que demoram para descobrir a gestação”, enfatiza Lilian Sales. “Nas redes sociais, não é o argumento completo que aparece, e as pessoas só têm acesso a esse argumento muito simplista, que é a ‘defesa da vida.’”

A professora analisa também os passos em falso da esquerda no diálogo com os evangélicos e as perspectivas nesse campo para as eleições de 2026, sem grandes novidades em relação às últimas duas disputas presidenciais.

Leia os destaques:

CartaCapital: Como os articuladores do projeto usam a fé pra emplacar mais esse retrocesso?

Lilian Sales: É uma história longa, na verdade. É o que a igreja católica chama de “defesa da cultura da morte”, mas é uma história que vem de 20 anos. A princípio, esses atores, tanto evangélicos quanto católicos, se associavam, faziam alianças para tentar barrar avanços dos direitos sexuais e reprodutivos.

Vimos isso em vários casos. Um exemplo foi o debate no Supremo sobre anencefalia. Naquele momento, a Igreja Católica já estava engajada, tentando fazer com que isso não avançasse. Só que nesses últimos anos, o que vimos é uma aliança também para impor retrocessos. Então, não é mais para impedir o avanço, mas para reverter o que já existe.

Não é um movimento só do Brasil. Podemos olhar para o que aconteceu na Polônia há alguns anos, porque todas as possibilidades de aborto foram excluídas da legislação.

Primeiro, essa aliança vai se fortalecendo e, conforme ela se fortalece, consegue barrar os avanços. A partir desse momento, começa a tentar impor retrocessos, que é o que estamos vendo com esse PL, que coloca em xeque o aborto legal no Brasil.


CC: Há diferenças significativas entre a mobilização de católicos e a de evangélicos nesse tema?

LS: Recentemente, o que temos de novo é realmente a entrada dos evangélicos, a adesão dos evangélicos a essa pauta e de uma forma muito estridente, muito visível. Vemos um crescimento dos evangélicos, tanto na sociedade quanto na inserção no universo da política.

Quando entram nesse mundo da política, também vão colocando suas pautas. E essa pauta da “defesa da vida”, que é o nome que eles dão, era muito cara à Igreja Católica. Nesses últimos anos, com a visibilidade dos evangélicos, eles aderem com muita força a essa pauta e começam a se mobilizar em torno dela.

Não é uma adesão passiva, mas ativa, no sentido de se mobilizar, de organizar seus quadros, de formar pessoas, de formar um ativismo contrário ao aborto, contrário aos direitos reprodutivos.

Jair Bolsonaro durante encontro com pastores evangelicos, em 7 de setembro de 2020. Foto: Isac Nóbrega/PR

CC: Por que a esquerda patina tanto no diálogo especialmente com os evangélicos?

LS: Essa é a pergunta de um milhão de dólares, mas tenho a impressão de que seja pela dificuldade no que se convencionou chamar de “pauta dos costumes”. Só não podemos colocar todos os evangélicos no mesmo balaio, nem os católicos e nem a esquerda.

Temos uma esquerda que é a favor de todas essas pautas, mas boa parte da esquerda brasileira foi formada na Igreja Católica. Então, é mais recente essa adesão da esquerda às pautas progressistas.

Não podemos colocar todos os evangélicos no mesmo balaio, daí a dificuldade de comunicação da esquerda com esses grupos especificamente, mas também com uma parte significativa dos católicos, porque já temos um movimento católico de extrema-direita que vem se fortalecendo no Brasil. É mais silencioso, mas já é forte.

Olhemos, por exemplo, para a Frente Parlamentar em Defesa da Vida, composta pelo Nikolas Ferreira (PL-MG) e pela Christine Tonietto (PL-RJ) – Nikolas é um evangélico e Tonietto é uma católica de extrema-direita. Já existem alas de extrema-direita dentro do catolicismo, e com ela a esquerda também não consegue dialogar.

Se formos olhar além dos pastores evangélicos – Sóstenes, Malafaia, esses mais midiáticos -, por exemplo, as páginas da Cristiane Tonietto nestes dias estão bombando. Ela está festejando muito a aprovação da urgência desse PL.


CC: Há algum caminho viável para começar a mudar esse cenário?

LS: Muito provavelmente em 2026 voltaremos a um debate que já havia em 2018 e que voltou em 2022, porque ele não mudou, na verdade. Mudamos a Presidência, mas continuamos vendo esses atores ligados à extrema-direita em uma pressão muito forte sobre o governo federal.

CC: Com um Congresso ainda mais à direita que o anterior…

LS: Exatamente. Ele se torna ainda mais estridente, ainda mais ativo quando relacionado a pautas como o aborto. E isso tem mobilizado.

É um movimento que vemos se replicar em outros lugares do mundo. Então, vemos que há uma circulação de atores mundialmente, de argumentos transnacionais, que são acionados em diferentes lugares. Essa extrema-direita não está morta, está muito ativa no Congresso e nos governos de estado, nas Câmaras.

A impressão que tenho é que vamos continuar nesse debate por algum tempo. É difícil dizer até quando.

CC: Qual é, em meio a tudo isso, o papel das redes sociais na disseminação de fake news, por exemplo, sobre o aborto?

LS: Essa questão das redes é muito importante, já que elas mobilizam e atingem muitas pessoas. Circulam fake news ou, pelo menos, meias verdades, na melhor das hipóteses. Porque há um argumento forte e muito difícil de se contrapor, que é a “defesa da vida”, entre muitas aspas.

Eles se colocam como “em defesa da vida”. Como se opor a quem “defende a vida”? Então, fazer oposição a isso é muito difícil nesses debates de redes sociais.

É uma meia verdade porque nessa “defesa da vida” eles estão mostrando a “defesa” apenas da vida do feto, apenas a “defesa” de uma vida ainda não nascida, omitindo todo o contexto.

CC: Independentemente de ser uma gestação resultante de estupro, por exemplo.

LS: De uma criança de 12 anos que foi estuprada… Se essa gestação for mantida, muito provavelmente ela morrerá. Então, eles estão “defendendo” uma vida para que duas vidas depois não existam? Porque podemos falar dessa vida não nascida e da vida de uma criança já nascida, de 12 anos, que muito provavelmente sofrerá consequências físicas –  estou dizendo sobre morte, nem só sobre as consequências psicológicas.

Quem mais vai sofrer com esse projeto de lei são as crianças, as meninas que demoram para descobrir essa gestação. Nas redes sociais, não é o argumento completo que aparece, e as pessoas só têm acesso a esse argumento muito simplista, que é a “defesa da vida”. Mas é muito fácilA CartaCapital, Lilian Sales alerta para o fortalecimento da extrema-direita entre católicos e projeta o debate em 2026 aderir a ele, porque ninguém vai se opor à “defesa da vida”.

Então, há essa dificuldade de se contrapor a esse argumento em um debate que nunca é completo. Nas redes sociais, isso sempre vai aparecer de forma fragmentada.



Fonte: Carta Capital

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