A vitória de Claudia Sheinbaum na eleição presidencial do México é significativa sob diferentes aspectos: trata-se da primeira mulher e da primeira pessoa de esquerda, stricto sensu, a chegar ao cargo. A identidade de seu governo, porém, dependerá do quanto ela se distanciará ou se aproximará da gestão do popular Andrés Manuel López Obrador, atual presidente e seu padrinho político.
A avaliação é de Adrian Gurza Lavalle, livre docente do Departamento de Ciência Política da USP e vice-diretor do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o CEBRAP. Ele se graduou em Ciencia Política e Administração Pública na Universidad Nacional Autónoma do México, a Unam, instituição na qual também obteve seu mestrado, em Sociologia. Tem ainda um pós-doutorado no Institute of Development Studies, na Inglaterra.
“AMLO não apenas fez sua sucessora, como tentou deixar o programa organizado para os próximos seis anos”, disse Lavalle a CartaCapital. “Então, há a esse respeito uma incógnita e ainda não se sabe se Claudia continuará todas as linhas de política do atual governo — inclusive as mais polêmicas, em relação às quais ela não se manifestou criticamente durante a campanha.”
Relembre em quatro pontos a trajetória de Sheinbaum:
- formou-se em Física pela Unam, na qual também concluiu uma pós-graduação em Engenharia Ambiental. Tem no curríulo, ainda, um pós-doutorado em Berkeley, nos EUA;
- participou do Painel sobre Mudança Climática da ONU que ganhou o Nobel da Paz em 2007;
- foi secretária de Meio Ambiente na Cidade do México, à época comandada por AMLO;
- foi chefe de governo da Cidade do México entre 2018 e 2023.
Dada a popularidade de López Obrador – cerca de 60% de aprovação após quase seis anos no poder -, Lavalle entende que a eleição deste ano foi uma espécie de plebiscito sobre o atual governo. E o presidente passou no teste com sobras.
Daqui em diante, porém, Claudia terá de lidar com alguns obstáculos concretos, em especial a violência, uma chaga que assola o México e expõe a incapacidade do Estado frente ao narcotráfico.
Outros desafios no horizonte da presidenta eleita envolvem uma crise hídrica e dificuldades gritantes no acesso à saúde.
“Há uma falha no planejamento e na forma como os sucessivos governos mexicanos têm lidado com a questão ambiental e com a questão da água. Essa é uma pendência enorme sobre a qual, dada a formação de Claudia, espera-se que ela consiga produzir alguma diferença.”
Na entrevista, Lavalle também analisa as semelhanças e as diferenças entre Claudia e Dilma Rousseff (e entre AMLO e Lula) e projeta a tendência sobre a política externa do México em relação à América Latina nos próximos anos.
Confira os destaques:
CartaCapital: O que representa a eleição de Claudia?
Adrian Gurza Lavalle: Há um forte elemento de continuidade, um de novidade e um de incógnita.
O volume de votação foi muito expressivo e não deriva diretamente do reconhecimento de Claudia ou das propostas de campanha. É um fenômeno mais geral que se chama Andrés Manuel López Obrador.
Não é gratuito que a maior parte das notícias dedique tratamento ao governo de AMLO, e isso tem sentido porque, a rigor, a eleição foi plebiscitária em relação à figura de AMLO e ao governo da Quarta Transformação.
Então, era continuidade ao governo de AMLO ou mudança. E houve uma manifestação maciça, muito maior do que a esperada, em favor da continuidade das propostas do programa de governo de AMLO.
Ela própria tem virtudes, não estou dizendo que não tenha, mas seria inexplicável o volume de votação na figura dela não fosse por esse caráter plebiscitário, que de fato vai além da figura presidencial. Esperava-se, que dada a popularidade do presidente, Claudia fosse ganhar com uma diferença entre 20 e 30 pontos e de fato foi o que ocorreu.
Menos esperado é esse resultado do ponto de vista da composição do Congresso. Pelo menos na Câmara dos Deputados, até os dados de ontem, o Morena (partido de Claudia e AMLO) já havia obtido uma maioria qualificada, o que significa que terá condições de reformar a Constituição sem o apoio da oposição. Essa é uma notícia que nem o próprio Morena esperava.
CC: E trata-se da primeira mulher a presidir o México…
AGL: Não é só a primeira mulher a presidir o país, de uma tradição muito forte de estrutura patriarcal e profundamente conservador do ponto de vista dos costumes, mas é a rigor a primeira candidata de esquerda propriamente a chegar ao governo.
AMLO pertence a uma linhagem de políticos que vem do Partido Revolucionário Institucional, é um político que corresponde ao que nós chamaríamos de política de massas do Estado pós-revolucionário. Tem uma orientação popular, uma orientação nacionalista, mas não é e nunca foi um candidato de esquerda, não faz parte dessa linhagem.
O que diz respeito à incógnita é o quanto o fato de o fenômeno Claudia se explicar em boa medida pelo fenômeno AMLO projetará ou não sombras sobre o governo Claudia, que a princípio vem de uma transição política distinta, mais à esquerda.
AMLO é um animal político. Não apenas fez sua sucessora, como tentou deixar o programa organizado para os próximos seis anos. Então, há a esse respeito uma incógnita importante, e ainda não se sabe se Claudia continuará todas as linhas de política do atual governo – inclusive aquelas mais polêmicas, em relação às quais ela não se manifestou criticamente durante a campanha.
Apoiadores de Claudia Sheinbaum comemoram a vitória na Cidade do México, em 3 de junho de 2024. Foto: Yuri Cortez/AFP
CC: Além disso, quais são os principais desafios concretos do novo governo?
AGL: O principal problema de Claudia é claramente a questão da violência. Obviamente a violência não começou com AMLO, é um problema endêmico há muito tempo, desde que a transição política acabou por dar um enorme espaço de crescimento ao crime organizado.
Durante muitas décadas o crime organizado estava sob controle do Estado, de um partido de Estado que tinha algum tipo de arranjo com o crime organizado, que progredia à sombra de uma espécie de associação com importantes figuras políticas locais. Mas na transição abriu-se um espaço para o crescimento importante do crime organizado, com um conjunto de políticas dos Estados Unidos que fecharam a fronteira ao crime organizado.
Isso fez o crime organizado no México, especialmente o narcotráfico, que era muito voltado para o tráfico de entorpecentes para os Estados Unidos, se voltar para o México como mercado consumidor. E isso aumentou estupidamente os níveis de violência.
O presidente Felipe Calderón decidiu empreender uma guerra contra o narcotráfico e colocou o Exército contra o narcotráfico. O resultado disso foi que os níveis de violência no México se multiplicaram extraordinariamente. Os mortos pela violência no México atingem cifras parecidas às de uma guerra civil, e a luta sistemática contra o cartel acabou por polarizar alguns cartéis e por produzir metástases do crime organizado, de modo que hoje no México o crime organizado não está mais só voltado para o tráfico, mas tomou conta de atividades as mais diversas – de cobrança pelo direito de uso do solo para comerciantes, sequestro, tráfico de órgãos…
Claudia herda uma situação de violência explosiva, hoje o tema que mais preocupa o México. É um problema que não tem nem de longe uma solução simples.
AMLO decidiu criar uma guarda nacional sob a tutela do Exército que, em vez de tirar o Exército das ruas, dá ao Exército funções de polícia. É uma medida extremamente controversa, mas ele decidiu fazer isso e Claudia a herda. Não se sabe o que vai fazer ao respeito.
CC: E além da segurança pública?
AGL: O governo AMLO privilegiou fortemente a transferência de recursos e benefícios públicos por fontes diretas à população em maior vulnerabilidade social, e isso fez diferença do ponto de vista do sucesso do governo. Houve um aumento expressivo do salário mínimo e de benefícios sociais.
Mas, ao fazer isso, o governo de AMLO cuidou pouco da política pública. De fato, não foi raro ver uma certa negligência do ponto de vista do planejamento sistemático em relação à questão de médio e longo prazos de política pública.
Não conseguiu, por exemplo, levar a cabo a proposta de unificar o sistema de saúde – temos dois sistemas de saúde. Ele desmantelou um seguro popular, que havia sido construído pelas gestões anteriores, para produzir uma unificação que não produziu. No lugar não ficou nada.
Há uma deterioração do acesso à saúde de uma parte da população do México, com um sério problema de acesso a remédios. Faltou um planejamento, faltou política pública, embora tenha tenha havido política social.
Sustentar isso a longo prazo é difícil. É preciso ter estrutura, é preciso ter alguma coisa como o SUS no Brasil. Há aí um desafio de desenvolvimento institucional de políticas públicas que Claudia vai ter de enfrentar, porque a tônica do governo AMLO foi muito voltada a poupar o máximo de recursos com a máquina pública, inclusive deteriorando o funcionamento da máquina pública, para beneficiar transferências e benefícios de naturezas diversas.
Isso tem implicações de médio e longo prazos do ponto de vista daquilo que o Estado é capaz de sustentar. Sem estrutura, o Estado não consegue fazer isso no longo prazo.
CC: Qual é a situação da economia?
AGL: A economia não está mal, o desemprego está muito baixo, mas há alguns problemas históricos no México que são alarmantes e que não têm recebido atenção suficiente, como o problema da escassez de água. O país está em uma crise hídrica que provavelmente se tornará parte do noticiário de forma mais frequente nos próximos anos.
A esse respeito reclama-se política pública de longo prazo, com muito investimento, e essa é uma falha no planejamento e na forma como os sucessivos governos mexicanos têm lidado com a questão ambiental e com a questão da água. Essa é uma pendência enorme sobre a qual, dada a formação de Claudia, espera-se que ela consiga produzir alguma diferença.
CC: Há semelhanças entre a ascensão de Claudia à Presidência e a de Dilma Rousseff, no Brasil?
AGL: É difícil fazer essas analogias sem cometer alguns excessos. Primeiro porque com alguma frequência se assume que Lula é uma espécie de equivalente a AMLO, e me parece que essa avaliação é incorreta.
Há muitas diferenças entre Lula e AMLO, muitíssimas. O fato de ambos terem conseguido fazer a sua sucessora diz que tiveram popularidade suficiente para fazê-lo, mas não diz muito respeito aos problemas que legam, aos benefícios da política pública que legam, nem ao perfil das candidatas em si.
Talvez exista alguma semelhança no fato de Claudia ser reconhecida por sua competência, por ser uma pessoa muito mais técnica, muito mais voltada para um trabalho fortemente orientado por dados, com mais dureza e menos traquejo político na tomada de decisões.
Nisso talvez tenha alguma semelhança com um certo modo de como Dilma era esboçada quando comparada ao perfil do Lula. Mas fora desses semelhanças me parece que não há muito mais.
CC: E quais são as principais diferenças entre AMLO e Lula?
AGL: AMLO é muito mais um político profundamente desconfiado de todas as mediações políticas que não sejam uma conexão direta entre o presidente da República e a cidadania. Nesse sentido, tem um perfil muito mais parecido com aquilo que a literatura chamaria de populismo do que Lula.
Lula construiu inúmeras mediações, todas as instituições participativas, todos os canais de envolvimento da sociedade civil, todo o adensamento das formas em que atores sociais múltiplos passaram a ter incidência em políticas públicas. Isso tem a ver com a perspectiva de alguém de esquerda que aposta no desenvolvimento de instituições, na construção de políticas.
O governo Lula é muito mais institucional do que o de AMLO.
AMLO desmantelou sistematicamente formas de mediação que faziam contrapeso ao seu governo. Esse governo tem na gaveta um projeto de reforma do Judiciário, ele quer que esse poder seja eleito por voto popular. Lula nunca faria isso.
CC: A proposta de eleição direta para juízes, inclusive da Suprema Corte, pode prosperar caso Claudia tenha maioria qualificada nas duas Casas do Legislativo?
AGL: Pode prosperar. Está dentro dos 100 pontos de governo e, se ela decidir levar isso adiante, terá condições de fazê-lo, do ponto de vista do Legislativo. É preocupante, porque qualquer pessoa que tenha alguma compreensão não majoritária do Judiciário sabe que ele é, por definição, é o poder anti-majoritário. Exatamente por isso não pode depender do voto.
O Judiciário está aí para fazer a revisão constitucional e defender causas inclusive quando essas causas são contrárias à maioria, porque a maioria responde pela composição do poder político e não pode responder pela composição do Judiciário. Isso produz um problema de maior consequência, mas não é essa a compreensão de AMLO.
Não sei se Claudia vai levar isso adiante ou não. É uma das incógnitas. Não se sabe o quanto Claudia vai construir distância em relação a AMLO e o quanto ela vai se manter fiel a todas aquelas medidas que o governo deixou engatadas para levar adiante.
Tem muitos observadores que dizem que Claudia tem cabeça própria, tem trajetória própria, e de fato tem. E que ela obviamente fez poucas críticas ao governo de AMLO porque faz parte, basicamente, de quem vai ganhar uma candidatura sob a proteção da grande liderança.
A campanha dela foi, nesse sentido, muito tranquila. Ela não comprou brigas, debateu pouco, foi pouco atingida pelos debates. Tinha uma posição profundamente confortável, não fazia nenhum sentido para ela construir distância em relação ao presidente. Mas não sabemos se isso é produto de um cálculo político ou de uma adesão profunda ao programa de AMLO.
CC: Há alguma indicação de uma política externa mais próxima da América Latina e da América do Sul, por exemplo em relação ao Brasil? Sob AMLO, essa política foi tímida.
AGL: Em geral, a política do México em relação à América Latina e ao Brasil tem, infelizmente, uma influência enorme da relação do México com os Estados Unidos, pelo menos do ponto de vista migratório.
Como o México é uma porta de entrada importante para os Estados Unidos, os acordos que o México faz com os Estados Unidos determinam em boa medida a forma da política migratória para a América Latina.
Do ponto de vista da política para a América Latina, de fato AMLO teve uma política tímida. Uma das ideias mais interessantes dele foi fazer um programa de investimento regional para reter população na América Central, fazendo uma espécie de parceria México-EUA para produzir oportunidades de emprego na América Central de modo a frear o narcotráfico.
Foi uma espécie de ajuda ao desenvolvimento internacional, mas isso está vinculado a uma agenda dos problemas básicos dos Estados Unidos, que envolve como resolver o problema da migração e como o México lida com isso, visto que é o principal caminho de entrada terrestre para os Estados Unidos.
Então, essas agendas estão muito atreladas a essa questão maior, que é o peso extraordinário da relação México-Estados Unidos nas relações internacionais. Não sei se isso vai mudar. Claudia não teve oportunidade de se pronunciar a esse respeito do ponto de vista das gestões anteriores.
Ela teve uma gestão meteórica e não ocupou cargos que demandassem muita exposição acerca de múltiplas coisas, em especial sobre as relações internacionais, então não saberia dizer o que esperar dela nesse nesse flanco.