Pela primeira vez, as eleições para prefeito e vereador no Brasil irão ocorrer com a existência das federações, que unem as siglas em âmbito nacional, que ficam com um vínculo de, no mínimo, quatro anos. O resultado disso, segundo a análise do coordenador do Gabinete de Assessoramento Eleitoral (Gael) do Ministério Público (MP) do Rio Grande do Sul, Rodrigo López Zilio, será uma inevitável judicialização diante da incompatibilidade das legendas no nível local.
“Eles vão se federar, mas jamais vão ver a ideia da complexidade dessa relação nos mais de 5,5 mil municípios”, pontua, chamando a atenção para conflitos em coligações locais. “Quem vai ter prioridade em relação a isso?”, questiona.
Zilio também apontou que, embora o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) esteja engajado em questões ligadas à tecnologia, como o uso da inteligência artificial e deep fakes, ele crê que nos pleitos municipais, os crimes eleitorais serão mais “tradicionais”. “Ainda é a eleição do corpo a corpo, dos velhos vícios da República, abuso de poder político. O prefeito usa a máquina da administração para te dar benefício, para te colocar um asfalto, para te dar um tijolo”, analisa. Ainda assim, há práticas que ganharam força em 2022 e que estão no radar do MP, como o assédio eleitoral em empresas e a participação do crime organizado.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Zilio também comentou sobre um fato inusitado. A reeleição, no pleito municipal suplementar na cidade gaúcha de São Francisco de Assis, do prefeito que havia sido cassado, mas não perdido os direitos políticos.
Jornal do Comércio – Como o Ministério Público está se preparando para as eleições municipais?
Rodrigo Zilio – Nós temos no Rio Grande do Sul 165 promotores eleitorais que trabalham nos 497 municípios. Mas basicamente a estrutura que o Ministério Público tem na (área) eleitoral é a mesma que trabalha na Justiça Comum. Por exemplo, na minha cidade natal, Encantado, o promotor ainda tem suas atribuições naturais na vara da Infância, Meio Ambiente etc. É diferente da Justiça Eleitoral, que tem uma estrutura própria para isso. Nós, no Ministério Público, temos uma estrutura única. E, embora estejamos tratando de uma eleição subsequente, entre 2020 e 2024 mudou muita coisa. Isso exige dos promotores uma atualização, porque eles ficam dois anos na função eleitoral e saem. A gente tem que trabalhar com essa dupla situação, com poucos servidores e pouca estrutura e promotores que trabalham com rodízios. Estamos fazendo várias oficinas e cursos de aperfeiçoamento. Eles estão recebendo orientações presenciais e virtuais, e tudo isso fica num banco de dados, com um manancial de peças, de modelos de peças para que eles possam consultar, e dar uma resposta rápida.
JC – Entre todas essas mudanças vigentes nas eleições de 2024, o que considera mais desafiador?
Zilio – A eleição de 2020 foi atípica pela pandemia: as pessoas estavam distantes, não se viam, havia o distanciamento social, não se podia nem fazer propaganda de rua, então o nosso último parâmetro de eleição normal, entre aspas, é 2016, que foi quando a eleição de rua aconteceu. O TSE teve uma preocupação muito forte na questão da inteligência artificial. O TSE é responsivo, ou seja, quando vêm os desafios dos casos concretos das eleições presidenciais, ele resolve aquele caso completo, mas ele vai e agrega aquele conhecimento, aquela decisão numa resolução. Como nas eleições presidenciais de 2018 e 2020 tivemos muito abuso midiático na internet, a gente vai se deparar com a questão da inteligência artificial. O TSE proibiu, por exemplo, deep fakes, que são aquelas montagens de áudio e vídeo feitas com o artifício de enganar eleitores.
JC – Mas as eleições municipais têm essa característica?
Zilio – O TSE faz isso pensando numa eleição presidencial, em que os partidos, as coligações, a própria guerrilha digital é estruturada e bem financiada. A indagação legítima que tenho é até que ponto isso vai ser uma realidade nas eleições municipais, sobretudo em municípios pequenos, como no Rio Grande do Sul, em alguns em que a internet sequer é uma realidade. Então, acho que embora a gente tenha que ter alerta em relação à questão de diminuir as possibilidades de impulsionamento de conteúdo, tenho uma tendência a dizer que uma eleição municipal não é igual, no sentido de estarmos sujeitos aos mesmos abusos. É uma eleição absolutamente diferente. Ainda é a eleição do corpo a corpo, dos velhos vícios da República, abuso de poder político. O prefeito usa a máquina da administração para te dar benefício, para te colocar um asfalto, para te dar um tijolo. É o abuso do poder político e econômico, sobretudo num país com desigualdades econômicas sensíveis, como é o Brasil. Então acho que isso ainda vai movimentar 90% do nosso trabalho eleitoral.
JC – Nas eleições presidenciais em 2022, ganharam força em diversas regiões o assédio eleitoral nas empresas e também o achaque do crime organizado em regiões periféricas. Isso está no radar do MP no Estado?
Zilio – Os grandes desafios da democracia contemporânea, além da desinformação em relação a candidatos e a que afeta a integridade do processo eleitoral, são o assédio eleitoral, com o uso das empresas para de alguma forma corromper ou aliciar, e a influência do crime organizado nas eleições. A gente tem visto que a realidade nos traz um desafio bem grande em relação à questão do crime organizado. Isso tem sido uma realidade nas eleições municipais do Rio Grande do Sul, embora pequena. A interferência de milícias, do crime organizado, é o que há de mais nefasto para derruir a democracia.
JC – É o próprio crime elegendo representantes.
Zilio – Exatamente. A gente tem um radar em relação a isso nas eleições de 2024. O Gabinete Eleitoral, que é o órgão que eu coordeno, tem contato com o Núcleo de Inteligência do Ministério Público (Nimp) que trata da questão do crime organizado, dos Gaecos (Grupos de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado), então a gente tem mantido um diálogo em relação a isso. A realidade é que o crime organizado não para, a atividade criminosa é rotineira. Se a gente verifica que aquela situação que envolve milícias e crime organizado tem algum interesse de interferir numa determinada eleição, a gente acaba acendendo o radar no sentido de vincular o promotor que atua no Direito eleitoral naquele município com o promotor que atua no Gaeco para direcionar àquela situação específica. A gente está atento e esse tipo de prática não vai ser tolerada.
JC – Na eleição deste ano, diminuiu o número de candidaturas proporcionais para cada partido, que se limitam a 100% mais um do número de cadeiras da Câmara de Vereadores. Isso não fará com que partidos possam ainda mais preterir a candidatura de minorias? Isso não restringe a representatividade?
Zilio – Pode haver uma relação de causa e efeito no sentido de, se o partido oferecer menos vagas, logo ele abre menos espaços para pluralidades. Pode até ser uma verdade, mas acho que o ponto central é que os nossos partidos hoje são patriarcais, são oligárquicos. O legislador manda reservar 30% de vagas para mulheres nas candidaturas a cargos eletivos, mas ele não tem a capacidade de fazer isso internamente no partido político. Desconheço o partido político que tenha, no seu estatuto, uma regra de paridade com a Lei Eleitoral. Não faz o dever de casa. Então, acho que mais grave do que o limite do número de candidatos, é a cultura partidária que é avessa à abertura de representatividades. A gente não vê mulheres em cargos de diretivos partidários, a gente não vê negros, e sim geralmente uma pessoa branca, com dinheiro, e que tem o controle da situação.
JC – Esse ano haverá pela primeira vez as federações na eleição municipal. Qual a perspectiva dentro dessa nova natureza?
Zilio – Vai ser bem complicado. A federação, que é criada num âmbito nacional, com o partido A e o partido B que têm suas convergências em âmbito nacional, eles vão se federar, mas eles jamais vão ter a ideia da complexidade que é a relação desse partido A e B nos mais de 5,5 mil municípios. Então, a gente está preparado para que isso aconteça: federações cujos partidos em nível nacional têm uma relação harmônica, e que são inimigos figadais nas eleições municipais. O partido A federado vai querer se coligar com tal partido, e o partido B vai querer outra coisa. E quem vai ter prioridade em relação a isso?
JC – Isso tende a gerar judicialização?
Zilio – Exatamente. Estamos muito preparados para ter de tratar com dissidências de federação, partidos vinculados a uma mesma federação, que tinham que jogar no mesmo time, que em nível municipal estão cada um arrastando para um lado. Como o juiz vai decidir? Quem tem razão em relação a isso? Essa é uma questão que a gente vai ter que debater.
JC – As eleições de 2018, 2020 e 2022 conviveram, em graus diferentes, com a desinformação. Como neste ano, em âmbito municipal, o MP enxerga a questão?
Zilio – Isso vai estar presente num contexto um pouco diferente, né? A mentira não nasceu em 2018, mas acabou se especializando. A internet, a horizontalidade das comunicações acabaram com o monopólio da fala dos meios de comunicação de massa e acabaram se tornando um prato cheio para promover desinformação. A diferença das eleições de 2018 e 2022 para as eleições municipais, no contexto da desinformação em 2024, é que será uma desinformação para desconstruir a candidatura adversária no sentido de ofender a honra, de criar fatos e narrativas que vão de algum modo causar menosprezo e ofender reputações. Quer dizer, vai ser uma desinformação para desconstruir reputação de candidato adversário. Isso é bastante diferente da desinformação que foi engendrada nas eleições presidenciais de 2022 e 2018, difundida para promover desinformação, no contexto brasileiro, especificamente com um dos candidatos adotando a questão de críticas à justiça eleitoral e promovendo a desacreditação do sistema eleitoral. Isso retroalimenta polarizações. Em 2018 e 2022, a gente não debateu exatamente uma proposta de governo, e sim um plebiscito em relação a um candidato que era um ex-condenado, contra outro candidato que flertava com a ditadura.
JC – Recentemente tivemos um fato inusitado no Estado, com a eleição municipal suplementar em São Francisco de Assis. Por que um dos candidatos que foi cassado pela Justiça Eleitoral pôde concorrer novamente, a ponto de ser eleito de novo?
Zilio – Lá em São Francisco de Assis, o prefeito e o vice foram cassados, mas, na ação que redundou na cassação, as provas indicaram que o responsável pelos atos foi o vice, e não o prefeito. O direito eleitoral diz que há duas sanções possíveis: a cassação do registro e do mandato. Essa eu posso impor a qualquer pessoa, ainda que ela não tenha participado do ato. Ela diz respeito a qualquer pessoa que tenha sido beneficiado pelo ato, o termo é esse. Então, se o vice-prefeito fez um ilícito e esse ilícito existiu e foi grave, eu casso tanto o prefeito como o vice, porque envolve a chapa como um todo. Só pelo benefício eles já poderiam ser cassados. Já a sanção de inelegibilidade é personalíssima, que eu só posso impor àquele que, de algum modo, tenha praticado, ou conhecido, ou aderido ao ato. Então a sanção de inelegibilidade exige uma responsabilidade subjetiva, no direito penal. Eu só posso condenar alguém por um crime se ele tiver participado, se teve dolo. Então, o que aconteceu em São Francisco de Assis? As provas indicavam que só o vice sabia e tinha conhecimento, o prefeito não tinha conhecimento, enfim, logo só o vice poderia ser inelegível, porque é uma sanção personalíssima, e o prefeito não, porque não havia prova de participação dele.