Zeina Latif já foi considerada uma das mulheres mais influentes do mercado financeiro brasileiro, título dado pela revista Forbes. Referência no Brasil e no exterior, foi economista-chefe da XP Investimentos e hoje lidera a Gibraltar Consulting.
Também foi pesquisadora e professora, traços que se revelam quando faz análises econômicas dentro de contextos históricos. A economista teve ainda uma breve aproximação com a política quando foi secretária de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo, na gestão de Rodrigo Garcia (PSDB).
Ortodoxa em alguns aspectos, como, por exemplo, quando considera a importância da manutenção de altas taxas de juro como regulador, Zeina, por outro lado, defende a gratuidade da universidade pública e de um sistema político que traduza os anseios sociais.
“Somos um país patrimonialista, o que gera boa parte dos problemas do país, sobretudo injustiças sociais. Somos frutos das escolhas das nossas elites”, apontou em sua fala durante a 37ª edição do Fórum da Liberdade, realizado em Porto Alegre, nos dias 4 e 5 de abril.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, a economista também avalia a atual conjuntura do ambiente de negócios no Brasil e comenta a projeção do governo federal quanto à meta de déficit zero.
Jornal do Comércio – A senhora já se manifestou contrária aos benefícios tributários. A retirada não impacta, da mesma forma, a economia?
Zeina Latif – Não é uma posição dogmática, ser a favor ou ser contra. Os benefícios têm que ser usados com muita parcimônia, de forma temporária, para atingir um objetivo temporário, de emergência. O que vemos é que não são fatores que geram crescimento da atividade beneficiada. Às vezes, geram uma margem de lucro maior, mas não chega a mudar a dinâmica do setor. Esse é um debate no mundo. Muitos países estão procurando reduzir esses benefícios tributários. Outra razão é que, muitas vezes, eles não são transparentes para a sociedade. Os governos vão renovando sem fazer um estudo da variação, um debate público, não há transparência. Há um questionamento sobre a eficácia e, ainda, o risco de gerar mais injustiças tributárias. Você dá um benefício para um setor em detrimento do resto. Não existe milagre, se alguém está recebendo benefício, está sendo retirado de algum lugar. Sobre ser um multiplicador de empregos, gerador de economia, há necessidade de fazer estudos antes de sair renovando. Grosso modo, a efetividade é baixa.
JC – No Rio Grande do Sul, há um grande movimento das entidades empresariais contrário ao fim dos benefícios fiscais.
Zeina – Neste contexto de finanças públicas estaduais, ainda com as reformas conduzidas pelo governador Eduardo Leite (PSDB) – que é um dos governadores de destaque em função da coragem que ele teve de tocar essas reformas – essa agenda ainda é muito frágil, em função dos excessos de outros governadores. Claro que retirar um benefício causa impacto, afinal a empresa tomou decisões em função disso. Esse debate tem que ser feito. Pelo menos, (é necessário) ir diminuindo aos poucos, sem virar a chave de uma só vez, até que todos se adaptem. Uma coisa me parece correta: não dá para, simplesmente, sair renovando sem maior cuidado.
JC – Com a reforma tributária, essa questão deverá mudar?
Zeina – Nesse contexto da reforma, do IVA (Imposto sobre Valor Agregado), a partir de 2033, não vai mais fazer sentido ter esse tipo de benefício porque o imposto é cobrado no destino e não na origem. Se existem acordos, eles têm que ser respeitados, no caso da guerra fiscal, por exemplo. Por isso, essa longa transição da reforma tributária. Os estados vão precisar se preparar, com um imposto cobrado no destino e a busca para atração de empresas vai ter que ser por outras vias, pela qualidade da mão de obra, pela qualidade da gestão, por judiciário previsível, por boas políticas públicas. Não pode ser só em função da questão tributária.
JC – A insegurança jurídica prejudica a economia?
Zeina – Com certeza. Quando pensamos no baixo apetite de investimentos no País a longo prazo, essa questão é um fator chave. Primeiro, você vai fazer o estudo de viabilidade do seu negócio e não tem como calcular a taxa de retorno com acurácia necessária. Tem um grau de incerteza muito grande, não é possível botar um preço. Não estou falando em risco, que você sabe de onde vem. Para aqueles que resolvem investir, tem que ter um profissional alocado para estar monitorando. Isso custa. São efeitos perversos. O problema da insegurança jurídica é complexo, envolve rever marcos jurídicos, um maior diálogo com as instâncias superiores do Judiciário, que muitas vezes toma suas decisões sem compreender a natureza econômica daquilo. Certamente bem intencionados, querendo proteger o consumidor, mas não está protegendo, está prejudicando muito mais. Tem que ter diálogo com as agências, com o Ministério Público e, obviamente, em um esforço de rever alguns marcos jurídicos contraditórios, ambíguos. Lamentavelmente, essa é uma agenda complexa. Não se resolve com uma reforma.
JC – Com a sua experiência, inclusive no mercado internacional, vislumbra alguma saída a curto prazo?
Zeina – O que tem de positivo no horizonte é a reforma do IVA. Pode até acontecer algum contencioso, mas o resultado vai ser de redução dos contenciosos tributários porque os cinco impostos indiretos são os responsáveis por grande parte das divergências. Outra boa notícia é que hoje estamos discutindo a insegurança jurídica. Ficamos décadas falando de juros e de câmbio e deixamos de discutir essas questões que a gente chama de micro econômicas. Elas são um veneno para o investimento. Veja a mudança no debate público: há 10, 15 anos era um tema pouco conhecido. Mas é um caminho complexo, é uma agenda meio invisível para a sociedade. Não é um tema que tenha grande apelo.
JC – Como a senhora avalia o ambiente de negócios no País?
Zeina – Nós já tivemos algumas medidas para melhorar o ambiente de negócios nos últimos anos, um pouco nessa linha. Mas é uma agenda difícil porque tem muitos interesses envolvidos. É um ambiente perverso, parte fruto das próprias pressões do setor privado. Por exemplo: por que o sistema tributário é tão complexo? Em parte porque o setor privado quer manter as sua benesses. É uma loucura porque para cada setor é uma regra, um regime diferente. Se por um lado, temos a responsabilidade do Estado, de governantes, do Judiciário, de outro, se for puxar de onde veio, tem alguma pressão de algum grupo organizado. Essa tem que ser uma agenda da sociedade. Do jeito que está, ninguém está feliz. Há um grau de desconfiança enorme de lado a lado. O Estado não confia em ações do setor privado e vice-versa. Por isso, precisa mudar, nem que seja pelas bordas, limpando embaixo dessa mesa.
JC – O País está passando por um movimento de queda de juros. A senhora é uma defensora da manutenção de juros como forma de controle da economia. Como avalia esse momento?
Zeina – Na verdade, não, não tenho um dogma em relação a isso. A gente está em um processo de corte de juros, tem espaço para cortar, talvez acima do que é hoje consenso no mercado no curto prazo. Estamos vendo uma resistência das expectativas inflacionárias. O grosso já foi, não é mais algo que tira nosso sono. Mas tem um residual. É como perder peso, a reta final é difícil. Temos um governo que fez escolhas de política fiscal de gastar. Você está estimulando a demanda da economia em um país que ainda não está com a inflação na meta. Isso limita o trabalho do Banco Central. Não se trata de defender juros elevados, pelo contrário. Se trata de criar mais condições para cortar para valer. Se a gente pega o Boletim Focus, a projeção é de uma taxa Selic de 8,5% no longo prazo. É muita coisa. Se a gente for pensar, na transição do governo (Michel) Temer (MDB) para o (governo Jair) Bolsonaro (PL), a gente não tinha ainda aprovado a reforma da Previdência, a Selic era 6,5%, que também é bastante. Pessoalmente, acho que dá pra ir para um patamar mais baixo, mas tem um caminho que precisa ser trilhado que é de retomar a agenda de contensão de gastos do País.
JC – Por onde passaria essa contenção de gastos?
Zeina – A gente fez a reforma da Previdência, foi uma reforma importante. Hoje temos a discussão de que em breve teremos que fazer outra, mas é mais cedo do que se imaginava. Temos uma rigidez de gastos enormes no País, coisas que são previstas na Constituição. Ou políticas que não estão na Constituição, mas que são difíceis de serem eliminadas. Não é possível eliminar um Bolsa Família. Pode redesenhar, mas não pode eliminar, em um país que ainda tem tantas dificuldades sociais. O atual governo elevou a rigidez em função de retomar aquela regra de correção de salário-mínimo pela inflação e pela variação do PIB (Produto Interno Bruto). Teve uma política importante de reconstrução do salário-mínimo no governo Fernando Henrique (Cardoso, PSDB) e depois acelerado no governo (Luiz Inácio) Lula (da Silva, PT). Quando a gente olha o valor do salário-mínimo para a nossa realidade não parece algo fora de lugar. Então, é fazer a correção pela inflação, mas um pouco mais modesta, de aumento real, e não ter um PIB, que tem surpreendido bastante. Parece que economista não tem coração. Mas não existe milagre, tem consequências. Essas questões fiscais são limitantes para cortar juros.
JC – A meta do déficit zero ainda está longe?
Zeina – Acho pouco provável que seja atingida. A gente tem tido surpresas positivas na arrecadação e, de repente, podemos ter ainda mais, mas eu acho difícil não fazer algum ajuste, marginal que seja. Lembrando o seguinte – essa é uma pauta importante: não cumprir a meta este ano, que a meta é mais elevada, é 0,5%, significa que você tem que utilizar aquele gatilho que é a despesa crescer apenas no limite de 50% da receita. Dada a rigidez de gastos, você não consegue cumprir isso. Então acho que é questão de tempo a gente ter uma revisão até para não prejudicar muito o orçamento do ano que vem que, de novo, tem uma meta mais ambiciosa e, mais do que isso, muitas medidas para elevação de arrecadação têm um efeito concentrado este ano. Não são coisas com efeito permanente. Então, o desafio para o ano que vem é maior ainda. Acho pouco provável que o governo consiga manter a meta. A tendência é fazer uma revisão.
JC – Na área da Educação, a senhora defende investimentos em pesquisa e universidade pública. É factível neste cenário?
Zeina – Estudei em universidade pública, a sociedade me financiou. Minha família não era rica, mas tinha condições de pagar. Por que estou falando isso? Porque tive condições de pagar o Ensino Médio. Do ponto de vista social, o ideal, o justo, é que quem tem condições, pague, quem não tem, não pague. Tem que ter alguma regra nesse sentido. Tem um professor do Insper, Ricardo Paes de Barros, que há uns bons anos fez a seguinte proposta: aquilo que a família dispendeu de recurso no Ensino Médio vai pagar a mesma coisa na faculdade. O que quero dizer é que é uma questão de justiça social. Claro que a mensalidade de uma boa parcela dos alunos, em função das cotas, ainda é uma participação grande de pessoas com renda na universidade pública, não é que isso vai ser suficiente para sanear as finanças da universidade pública, mas seria um dinheiro muito bem-vindo para financiar pesquisa, para ajudar os alunos mais carentes. Tem, sim, uma racionalidade financeira e tem uma questão de justiça social. Esse debate precisa ser feito.