(Reuters) – Pela terceira vez em pouco mais de sete meses, o comerciante Cassiano Baldasso começou o dia tirando lama de dentro de sua casa, no pequeno município de Muçum (RS), a 150 quilômetros de Porto Alegre. Mas, dessa vez, fez uma promessa: será a última.
A cidade teve 80% das casas atingidas pela enchente do rio Taquari provocada pelas chuvas recordes deste mês, a terceira desde setembro de 2023, e a mais violenta até agora. Com menos de 5 mil habitantes, o município pode ver grande parte da sua população ir embora, o que também pode acontecer em outras cidades da região.
“Não tenho ideia para onde vou, mas vai ser para algum lugar longe de encosta e muito longe de rio. Onde a gente não corra risco de vida”, disse Baldasso à Reuters enquanto retirava mais um carrinho de lama de dentro de casa.
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Menos de 24 horas depois, no entanto, a água chegou novamente. Dessa vez, por sorte, com menos intensidade, uma enchente “normal” para os padrões de Muçum.
“Algumas casas perto do rio foram atingidas, mas as pessoas já tinham tirado suas coisas, não teve mais prejuízo”, contou o prefeito Matheus Trojan sobre a nova cheia.
Na rua de Baldasso, que fica próxima ao rio, todas as casas foram atingidas. Algumas não resistiram e perderam telhados, paredes, portas e janelas. Em toda a cidade, os moradores passaram o sábado tentando salvar o que podiam.
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Em setembro, Muçum já havia sido atingida por uma enchente de grandes proporções. Em questão de poucas horas, o rio subiu 26 metros. O comerciante se salvou levando a família para o telhado da casa de dois andares, sendo resgatado por bombeiros no meio da madrugada.
“Na primeira enchente eu abri a porta, olhei, fechei e saí. Fui daqui à casa do meu pai chorando. Nunca chorei na minha vida, mas dessa vez eu chorei”, contou Baldasso, que também sofreu com uma enchente, ainda que menor, em novembro. “Agora, eu perdi qualquer apego.”
A algumas quadras dali, a família de Maria Marlene Venâncio limpava com escova e sabão cada objeto encontrada dentro de casa que não tinha sido levada pela enchente. Em setembro, a residência construída por ela para abrigar toda a família de sete pessoas foi levada pelas águas. Hoje, mora em uma casa alugada onde a água chegou a um metro e meio de altura.
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Nascida em Muçum, Marlene voltou à cidade para construir a casa de seus sonhos e, segundo ela, envelhecer junto à família, e agora não sabe o que fazer. Não quer ir embora da cidade, mas não sabe se vai poder ficar.
“Acho que futuramente Muçum vai virar rio. Realmente é de se pensar que vai ficar difícil para nós vivermos aqui. Só se a meteorologia mudar. Quem tem poder (financeiro) está indo embora”, disse.
Seu irmão Pedro e a mulher, Andrea, mudaram de volta para a cidade em 2020 para dar uma vida mais tranquila para a filha de 12 anos, mas já decidiram voltar para Porto Alegre.
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“Infelizmente vamos ter que voltar. Não tenho mais como, não tenho mais estrutura para ficar, são muitas perdas. Uma chuvinha a gente já fica em alerta”, disse Andrea.
Ao longo das ruas em Muçum e nas vizinhas Roca Sales, Colina e Encantado, assim como na grande maioria das cidades do Vale do Taquari, o que se vê depois da água baixar são móveis, roupas, máquinas e destroços empilhados na frente de todas as casas. Um testemunho de que todas aquelas famílias terão que recomeçar, mais uma vez, em poucos meses.
Maria Inês Silvério voltou para casa na última sexta-feira, mas ainda guarda as roupas em sacos plásticos. Teme que o rio suba de novo, como fez três vezes nos últimos meses.
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Diz que gostaria de ir embora, mas a casa comprada há 11 anos com sacrifício e um financiamento de 30 anos é o único bem que possui.
“Quando a gente comprou aqui não era área alagada, agora é. E cada vez o rio vai subir mais, está tomando conta”, afirmou. “Mas como eu vou sair? Morar de aluguel? Ninguém vai comprar de mim.”
Novas cidades
Em Muçum, o prefeito Trojan admite que ao menos parte da cidade terá que mudar de lugar. Na parte central é difícil encontrar uma construção que não tenha sido afetada.
“Estamos atônitos, em oito meses tivemos toda a perspectiva da cidade alterada. Vamos proibir a reconstrução em algumas áreas e pelo menos 40% da cidade estamos planejando reconstruir em outro lugar”, disse.
O ecólogo e professor da Universidade Federal de Rio Grande (FURG) Marcelo Dutra defende que não há alternativa para várias cidades do Estado, hoje, que não mudar bairros inteiros ou até mesmo o próprio município.
“Cidades inteiras vão ter que mudar de lugar. É preciso afastar as infraestruturas urbanas desses ambientes de maior risco. Devolver espaços aos rios e a natureza para que não atinjam mais as cidades com tamanha magnitude. Qualquer reconstrução precisa vir acompanhada de adaptação”, explica.
Rios como o Taquari perderam, ao longo dos anos, boa parte da sua profundidade. De um rio navegável, contam os moradores do Vale, hoje pode ser atravessado a pé em alguns pontos. Dutra explica que, ao vir a enxurrada, o rio não consegue mais ficar em seu leito porque não tem mais espaço para conter a água.
“As cidades precisam agora repensar seus planos diretores e, ou fortalecer as estruturas de contenção nas áreas já edificadas ou tirar estruturas públicas ou residenciais de áreas de maior risco e, na sequência evitar expansão para esse tipo de ambiente”, defende.
“Não podemos nos opor à natureza. Vamos nos colocar num risco tão grande é que quase uma falta de inteligência. Precisamos acordar para essa força que está nos mostrando a necessidade de adaptar e respeitar.”
O comerciante André Garibotti se adaptou, a sua maneira, sem esperar uma solução. Depois de três enchentes, vive com o mínimo possível. “Sou eu e meu pai. Temos uma tevê, duas camas, uma churrasqueira. A gente vive assim. Meu pai tem 77 anos, ele não tem tempo de começar outra vida em outro lugar”, conta.
Garibotti sabe que se não mudar, vai passar pela mesma coisa de novo.
“O Taquari é um cano entupido. A água não tem mais para onde ir, é claro que ela vai avançar na cidade”, diz. “A gente faz o que quer, a natureza cobra.”