No ano passado, o polo industrial da Zona Franca de Manaus teve prejuízos bilionários causados pelos problemas logísticos derivados da seca dos rios da região no ano passado, que paralisaram por dois meses o transporte de mercadorias para o resto do País. Agora, já está às voltas com um novo período de estiagem – e de prejuízos – ainda mais severo.
Os efeitos já são visíveis em Manaus. O Rio Negro está com 19,53 metros de profundidade, abaixo dos 23,42 metros da mesma época em 2023. A baixa dos rios na época de seca impede a atracagem de navios de grande porte na capital amazonense, como ocorreu em 2023 e em outros anos sob forte estiagem.
A demora do governo federal para dar início às obras após o recém-concluído processo de licitação de hidrovias, visando a acelerar a dragagem dos rios da região para permitir navegabilidade durante a seca, levou as empresas do polo industrial de Manaus a buscarem uma solução emergencial.
Num esforço conjunto envolvendo ainda o governo estadual e as duas empresas que operam terminais privados que atendem a Zona Franca – Super Terminais e Chibatão –, está sendo montada uma operação de guerra para criar um píer flutuante em Itacoatiara, a 270 km da capital amazonense, para escoar contêineres com produtos do polo industrial de Manaus.
O píer flutuante, de 240 metros de comprimento e 24 metros de largura, está sendo montado a 100 metros da margem esquerda do Rio Amazonas, num local com uma profundidade de 34 metros de calado – o que permite a recepção de todos os tipos e tamanhos de navios já partir da próxima segunda-feira, 9 de setembro.
Em Manaus, barcaças vão receber os contêineres com produtos da Zona Franca e transportá-los até o píer flutuante. O tempo de viagem é estimado em 18 horas na ida para Itacoatiara e 12 horas na volta, com as barcaças trazendo insumos de várias partes do mundo para as indústrias da Zona Franca durante a estiagem.
O píer flutuante está sendo equipado com três guindastes de 64 metros cada, plataformas elevatórias, empilhadeiras e todos os equipamentos necessários para as atividades de manutenção e operação 24 horas por dia, sete dias por semana, até dezembro.
Com a solução emergencial, as empresas do polo industrial esperam ao menos que o prejuízo não seja tão elevado este ano quanto em 2023. Só com custos a mais de transporte de cargas e paralisação das atividades (incluindo férias coletivas durante a paralisação das indústrias por falta de insumos), a conta foi de R$ 1,4 bilhão no ano passado. Junta-se a esse montante outros R$ 5 bilhões em impostos estaduais e federais não recolhidos.
Para este ano, as indústrias estimam R$ 500 milhões de sobrecusto de transporte, incluindo a chamada “taxa da seca”, que as empresas que operam linhas de transporte marítimo de longa distância cobram para compensar a utilização limitada de contêineres devido aos baixos níveis de água em certos portos ou rios.
A taxa média é de US$ 5 mil por contêiner – acima dos US$ 3 mil de 2023 – e começou a ser cobrada em 1º de agosto, cerca de três meses antes do período crítico da estiagem. Há ainda os custos (ainda não contabilizados) dos serviços operados pela Super Terminais e Chibatão em Itacoatiara. Só a Super Terminais investiu R$ 45 milhões no projeto.
Para o presidente executivo da Associação Nacional dos Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (Eletros), José Jorge do Nascimento Júnior, o setor não teme desabastecimento como no ano passado, pois desta vez conseguiu se programar.
Mas ele teme o encarecimento do frete e a incerteza quanto à dimensão da seca deste ano. Segundo ele, com a seca e todo o contexto que ela envolve, as empresas do polo industrial correm o risco de ter minimizada ou anulada no longo prazo a vantagem comparativa da Zona Franca de Manaus se não for criada solução para o problema logístico.
“Na prática, a seca de rios do Amazonas pode levar embora os incentivos fiscais de todas as empresas da Zona Franca”, adverte Nascimento Júnior. “Com isso, podemos ter evasão de investimentos e desemprego, assim como a não possibilidade da riqueza gerada com a Zona Franca poder construir outras matrizes econômicas.”
Contradição logística
Essa, talvez, seja a maior contradição envolvendo a logística da Região Norte, em especial do estado do Amazonas. Na Zona Franca de Manaus são produzidos 100% das TVs de até 42 polegadas, 90% dos aparelhos de ar-condicionado e 95% das motocicletas de baixa cilindrada do País, entre outros produtos.
No mapa nacional de origem e destino de manufaturados, Manaus está entre os cinco principais polos. Mas, diferentemente de outras regiões, não há rodovias asfaltadas nem ferrovias que liguem o Amazonas ao resto do País.
A maior parte dos bens produzidos no polo industrial é transportada por rios, sempre sujeitos a não permitir navegabilidade de navios de grande porte próximo a Manaus meses por ano durante a estiagem.
Essa realidade existe desde que a Zona Franca foi criada, nos anos 1960. Mas só este ano foi concluída a licitação de hidrovias, considerada a solução mais rápida para o problema logístico da região, por obrigar o concessionário a fazer obras de dragagem e sinalização nos rios que transportam mercadorias.
“A Amazônia enfrenta um problema secular de não investimento em infraestrutura sustentável e isso gera outros problemas associados ao não desenvolvimento da região”, afirma Augusto César Barreto Rocha, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e diretor adjunto da Federação das Indústrias do Estado do Amazonas.
Rocha observa que há uma incapacidade de o País planejar uma infraestrutura mais moderna para a região, que não repita os erros ambientais da Transamazônica. Ele cita como exemplo a BR-319, rodovia federal de 885 km que liga Manaus a Porto Velho (RO), que está abandonada, sob o argumento de que sua modernização causaria problemas ao meio ambiente.
“O asfaltamento da BR-319 é um apelo para a existência de um Estado Mínimo no Amazonas”, diz Rocha. “O não asfaltamento persiste em ser o maior emblema da ausência do Estado brasileiro como investidor, sem proteger o bioma, deixando uma rodovia no barro, voltada para a destruição, fazendo de conta que isso é proteção, e isso evidencia o descaso do Brasil para com o bioma amazônico.”
Paulo Resende, coordenador do Núcleo de Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral, afirma que falta um tratamento estratégico para o escoamento de produtos da Zona Franca aproveitando outros modais, como rodovias e ferrovias.
Ele diz que o Arco Norte – eixos de transporte nos vários modais responsáveis pelo escoamento de cargas e insumos pelos portos ao norte do Brasil – precisa receber mais investimentos, por ser o caminho mais curto para exportação para Ásia, via Guianas.
“Hoje exportamos para a China pela rota do Cabo da Boa Esperança e pelo Oceano Índico. O custo logístico é muito elevado, não faz sentido”, diz, acrescentando que a questão ambiental, sempre colocada como empecilho para desenvolver rodovias e ferrovias na Região Norte, é questionável.
Ele cita a polêmica em torno do Ferrogrão, projeto de ferrovia de quase 1.000 km que liga Sinop (MT) a Miritituba (PA), com traçado paralelo ao da BR-365. “O questionamento ambiental e de povos originários em todo o trajeto se limita a Miritituba, lá em cima.”
A falta de projetos de ferrovias e rodovias na Região Norte é atribuída por Resende a interesse de grupos que privilegiam o modal rodoviário. Assim, num contexto estratégico, o País poderia ter o primeiro grande projeto de multimodalidade, integrando hidrovia, ferrovia e rodovia no Arco Norte. “Tem demanda e espaço para todos os modais, com transporte de granel, carga geral, fertilizantes e grãos”, afirma.
Quanto à demora para o investimento em transporte fluvial nos rios da Amazônia, Resende é crítico. “Hidrovia não dá voto, existe uma cortina de fumaça para justificar a falta de investimento que é a questão ambiental, sendo que o modal hidroviário é o que menos polui.”