Entre os devotos de Jair Bolsonaro, nada mudou desde que o ex-presidente foi declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral, em junho de 2023. Não importa o que aconteça, eles seguem “fechados com o capitão” e estão convictos de que o “Mito” é perseguido pela esquerda, pela mídia, pelo STF e pelo sistema político em geral. Um infame complô para afastá-lo da cena pública, repetem, em uníssono, os eleitores consultados em uma pesquisa da Fundação Friedrich Ebert no Brasil, intitulada “Bolsonarismo sem Bolsonaro”.
A constatação não chega a surpreender. Depois de quatro anos de “guerra cultural” e frequentes embates com o Judiciário, era de se esperar que os bolsonaristas alimentassem teorias conspiratórias para justificar os pecados do “Mito”. O estudo traz, porém, pistas importantes sobre quem os bolsonaristas identificam como sucessores de Bolsonaro e o que esperam dos candidatos apoiados pelo capitão nas eleições municipais deste ano.
A pesquisa qualitativa ouviu, entre fevereiro e março deste ano, homens e mulheres que declararam voto em Bolsonaro no primeiro e no segundo turno das eleições de 2022. As entrevistas foram realizadas de forma remota, pelo Google Meets, e conduzidas em minigrupos focais nas três principais capitais do Sudeste, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
Não há dúvida, no conjunto dos entrevistados, de que Bolsonaro continua a ser a principal liderança da direita, o que estaria demonstrado pela grande quantidade de pessoas que ele é capaz de reunir em manifestações e atos públicos. “Para eles, o carisma do ex-presidente segue intacto, ao passo que o de Lula estaria em declínio”, observa Thais Pavez, doutora em Ciência Política pela USP e uma das autoras da pesquisa, desenvolvida em parceria com Camila Rocha, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e a socióloga Esther Solano, professora da Unifesp.
Tal percepção está bastante consolidada entre os bolsonaristas, como sugerem diversos depoimentos coletados. “Quando Bolsonaro está em algum lugar, a massa toda vai atrás dele. Quando Lula faz qualquer coisa, a gente viu aí, no 7 de setembro, estava lá ele, a esposa e meia dúzia de gatos-pingados”, afirmou uma conservadora eleitora de São Paulo, de 48 anos.
O bolsonarismo não depende, porém, exclusivamente da liderança do capitão. Outros políticos poderiam dar continuidade ao seu projeto, avaliam os entrevistados. Em uma hipotética prisão de Bolsonaro, seus seguidores acreditam que ele continuaria a ter voz ativa. Alguns até consideram repensar o apoio ao ex-presidente, caso ele venha a ser condenado, mas não abrem mão de votar em um candidato do mesmo campo político. “Se o caso for comprovado e ele for preso, por mais que eu goste dele, eu ia votar em outro, mas que seja da direita”, resumiu uma eleitora de Belo Horizonte de 34 anos.
Diante da impossibilidade de Bolsonaro disputar as eleições de 2026, o governador paulista Tarcísio de Freitas, do Republicanos, desperta entusiasmo entre os bolsonaristas, mesmo entre os moradores de outros estados. “Não sei muito bem, mas acredito que ele esteja fazendo um bom governo, as pessoas têm elogiado o governo dele”, diz outra moradora da capital mineira, também de 48 anos. A percepção é de um bom desempenho de Tarcísio na área de segurança pública, tema particularmente sensível para os habitantes do Rio de Janeiro. “Eu gostei do que ele tá fazendo, tá batendo de frente com o PCC, isso é uma coisa que ninguém tinha visto”, emenda um carioca de 38 anos.
“Eles têm pavor de traições, desconfiam de qualquer candidato que não vista a camisa do bolsonarismo raiz”, observa pesquisadora da Fundação Friedrich Ebert no Brasil
Há, porém, quem suspeite de que o governador paulista possa “trair” o capitão após chegar ao poder. “Eu não acho que ele vire um sucessor do Bolsonaro, não. Se a casa começar a cair, ele dá para trás. Ele dá para trás, porque o Tarcísio era do PSDB antes, né?”, comenta uma ressabiada eleitora conservadora de 44 anos. Na verdade, Tarcísio jamais foi filiado ao PSDB. O que assombra os bolsonaristas é o temor de que ele se volte contra o padrinho político, a exemplo do ocorrido com o ex-governador tucano João Doria. “Eles têm pavor de traições, desconfiam de qualquer candidato que não vista a camisa do bolsonarismo raiz”, observa Pavez.
Nesse quesito, o deputado federal Nikolas Ferreira é visto como mais confiável por sua histriônica batalha contra a “ideologia de gênero” nas escolas. “Ele é um cara cristão. Ele traz tudo às claras, entendeu? Ele é novo, mas é um cara que entende muito”, avalia uma paulistana de 39 anos. Pesa, porém, a falta de experiência. “O Nikolas é uma criança ainda dentro da política”, pondera uma eleitora de 31 anos, moradora de Belo Horizonte.
Michelle Bolsonaro, por sua vez, mobiliza o eleitorado feminino, mas é tida como alguém que não tem voz própria e seria conduzida pelo marido. “Eu ainda aposto mais no Nikolas do que na Michelle. Por quê? Infelizmente, porque ele é homem. Eu acho que ainda tem muito machismo. A mulher é sempre tachada. As pessoas começam a julgar o lado pessoal. E a gente é mais frágil nisso”, avalia uma moradora de São Paulo de 44 anos.
Em relação às eleições municipais deste ano, os entrevistados confirmaram a disposição de votar no candidato apoiado por Bolsonaro, mas enfatizaram que a “defesa dos valores” será o critério central para a definição do voto. “Eu sou contra o aborto, tenho uma fé, Jesus criou homem e mulher, então é importante, porque é algo em que acredito”, diz uma paulistana de 39 anos. Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes, candidato à reeleição pelo MDB, é visto com desconfiança justamente pela tibieza na defesa das crenças do grupo. “Não sei se ele é 100% Bolsonaro. Nunes não vai dar a cara a tapa pelos valores nem por Bolsonaro”, diz uma paulistana de 44 anos.
Já no Rio de Janeiro a desilusão impera. “Eu votei no Witzel achando que ia mudar e ele não fez nada. E a gente para e pensa, não é questão de ter o apoio de Bolsonaro, mas será que ele vai fazer o que tem de fazer ou vai ser corrompido como o Witzel?”, indaga um desapontado eleitor bolsonarista de 37 anos. “Espero que quem vier, venha para ajudar e tentar esquecer essa coisa de corrupção, foram cinco governadores presos.” •
Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mito inelegível’