Há cinquenta anos, durante a Feira do Livro de Porto Alegre de 1974, pela primeira vez uma edição de cartuns foi o volume mais vendido no tradicional evento cultural. Publicado pela estreante L&PM Editores, Rango 1 compilava as primeiras tiras (publicadas na Folha da Manhã, do grupo Caldas Júnior) de um personagem singular, tradução da miséria em forma de gente, alguém que tirava da própria situação paupérrima a liberdade para denunciar as desigualdades brasileiras.
Para não deixar dúvidas que Rango tinha chegado para ficar, ninguém menos que um Erico Verissmo dava o seu aval, no prefácio da obra. “Recomendo este livro com maior entusiasmo. Dirão os felizes acomodados da vida que suas estórias nos deixam um ressabio amargo. Claro! Vasques é o campeão do marginal, do homem que sofre de fome crônica. Faz no reino do humorismo o que Josué de Casto fez na sociologia.”
“Fiquei faceiro com tudo isso”, relembra Edgar Vasques, pai do icônico personagem. Em conversa com o Jornal do Comércio, ele reforça a ideia de que seu personagem, desde o início, é uma maneira de “tomar pulso” da situação dos miseráveis e excluídos. “A desigualdade continua, nunca mudou, e o Rango denuncia tudo isso com a ironia e ambiguidade que o humor permite”, acrescenta.
Rango surgiu na revista Grillus, publicada pelo Diretório Acadêmico da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), em 1970, uma criação do então estudante do curso, Edgar Luiz Simch Vasques da Silva, porto-alegrense da gema, clara e casca, desde 5 de outubro de 1949.
Uma das primeiríssimas histórias já deixava claro qual era a do personagem: o filho reclama da fome, Rango corta um pedaço da própria bunda e oferece à criança. Isso durante o período mais implacável da Ditadura Militar. Passado meio século, Edgar ainda sente a indignação de perceber que a profunda desigualdade social no Brasil permanece quase inalterada. “Medidas que se tomam para minimizar esta situação são sempre necessárias: as políticas das cotas, de inclusão, e até o Bolsa Família”, elenca.
Há um livro organizado por Suzana Gastal, Edgar Vasques – Desenhista Crônico, de 2013, onde ele concede uma grande e detalha entrevista, sobre sua formação acadêmica. No livro, ele diz: “Se tu fores olhar, sou mais artista do que arquiteto. Na Faculdade de Arquitetura tive uma ampla formação cultura, existencial e tal, mas profissionalmente, uma boa parte praticamente eu não uso.”
Depois da Grillus, Rango foi parar nas páginas de um jornal matutino que fez historia da imprensa dos anos de 1970 em Porto Alegre, a Folha da Manhã. Ali, nasceu um projeto chamado Quadrão, onde Edgar e José Guaracy Fraga abriam um espaço para cartunistas e desenhistas iniciantes.
Não demorou muito para que Rango rumasse Brasil afora. “No Rio Grande do Sul, o maior best-seller nas livrarias não é nenhum romance famoso, mas um livro de quadrinhos, onde se lança nacionalmente um tipo chamado Rango”, registrou o Jornal do Brasil em 9 de novembro de 1974. O personagem era popular de fato: “as historias são muito boas, leio todos os dias e muitas me lembram os meus amigos de infância”, disse Escurinho, atacante do Sport Club Internacional, um ídolo colorado.
Talvez parte do impacto do Rango esteja justamente nessa indesejável, mas inquestionável, atualidade. “A ideia de fazer o Rango nasceu de observações pessoais minhas, das coisas que via acontecendo. Sempre me impressionou ver que, apesar de toda a balaca, toda propaganda, há cada vez mais gente catando comida no lixo e cada vez mais gente com fome. Isso, dentro de um clima de crescente euforia econômica da classe média-alta”, diz o texto de Edgar para a edição de Rango 6, de 1978. Poderia ser dito hoje, sem mudar uma palavra sequer.
Na edição de Rango de 2018, Crocodilagem, que marca os 50 anos de atividade de Edgar Vasques, há a passagem das tiras desenhadas em preto e branco para a utilização de cores. A partir daí, a técnica e o talento do autor ficaram mais valorizados – mas sem que a melhoria venha para atenuar o espírito original: Rango continua miserável, continua com fome e com muita coisa a dizer.