Desde que a África do Sul realizou as primeiras eleições multirraciais, há 30 anos, e virou a página do apartheid, o poder sempre esteve nas mãos do Congresso Nacional Africano (CNA), o partido do histórico líder Nelson Mandela (1918-2013). Os sul-africanos vão às urnas daqui a um mês, em 29 de maio, e pela primeira vez esta hegemonia está em risco.
O eleitor vota no partido para formar as bancadas da Assembleia Nacional. Quem consegue mais de 50% dos votos controla a Casa e escolhe o presidente do país, que é chefe de Estado e de governo e tem mandato de cinco anos. O atual é Cyril Ramaphosa, que busca a reeleição.
Em todos os pleitos desde 1994, o CNA obteve a maioria da Casa. O cenário agora é incerto em uma votação facultativa, na qual 13 milhões dos cerca de 41 milhões de eleitores aptos ainda não se registraram.
Segundo pesquisa divulgada pelo instituto Ipsos na sexta-feira (26), a sigla tem 40,2% das intenções de voto. O principal partido de oposição, a liberal Aliança Democrática (AD), em sua origem ligada à minoria branca, aparece com 21,9%.
Caso o CNA não consiga mais da metade das 400 cadeiras da Assembleia, precisaria do inédito apoio de outros partidos para se manter no governo. Diante disso, algumas siglas opositoras, lideradas pela AD, já concordaram em formar uma coalizão, intitulada Carta Multipartidária, se amealharem juntas mais de 50% do eleitorado.
Há um quadro de desgaste do CNA agravado pelo desemprego e por escândalos de corrupção que nem mesmo o peso de Mandela parece ser capaz de atenuar. O maior ativista contra o apartheid, regime de segregação racial que vigorou na África do Sul por 46 anos, passou 27 anos na cadeia, foi eleito o primeiro presidente negro do país e se tornou uma figura global.
Porém, a África do Sul tem hoje uma das mais altas taxas de desemprego do mundo (32%) e uma crise energética que por vezes deixa a população sem eletricidade por mais de 10 horas por dia. O país, um dos maiores produtores mundiais de ouro e platina, recebe turistas do mundo inteiro em seus modernos aeroportos, mas, segundo o Banco Mundial, é um dos mais desiguais do planeta, com milhões de pessoas ainda vivendo abaixo da linha da pobreza.
Dos aproximadamente 28 milhões de eleitores cadastrados, quase 13 milhões têm de 30 a 49 anos, o que ainda pode garantir maioria ao CNA, mesmo que perca espaço. Em um país onde negros representam mais de 80% da população, principalmente quem viveu os anos do apartheid ainda tem uma sensação de gratidão pelo partido do Mandela. Como a questão racial persiste como um marcador político importante, a AD ainda é vista por parte da população como um “partido de branco”, por mais que tenha negros entre seus membros.
Justamente das fileiras do CNA saíram outros dois atores que hoje estão na oposição e podem ser decisivos em uma eventual aliança no caso de não haver maioria na Assembleia. Líder do ultraesquerdista Combatentes da Liberdade Econômica (CLE), o controverso Julius Malema comandou a ala jovem do CNA e defende expropriar terras sem indenização e nacionalizar todo o setor de mineração. Com a terceira maior bancada legislativa, o CLE tenderia a se aliar à sigla governista, mas não se sabe a que custo político.
O outro personagem é o ex-presidente Jacob Zuma, um nome histórico do CNA, que renunciou à Presidência em 2018, pressionado por correligionários em meio a acusações de corrupção. Ele hoje é líder do novato Lança da Nação -do zulu uMkhonto weSizwe (MK)-, com 8,4% das intenções de voto.
No mês passado, Zuma havia sido proibido de ocupar qualquer cargo que viesse a ser conquistado pelo novo partido, por ter sido condenado a 15 meses de prisão em 2021. A decisão foi tomada pela Comissão Eleitoral com base na Constituição, mas um tribunal anulou a proibição da candidatura, e Zuma está livre para disputar as eleições mais imprevisíveis em 30 anos de democracia sul-africana.