O custo com drenagem urbana que deixou de ser pago como uma taxa de prestação de serviço em Porto Alegre hoje está sendo pago como prejuízo, aponta o engenheiro Carlos Tucci. Assim como praticamente qualquer outra cidade brasileira, a Capital gaúcha não cobra da população a manutenção do sistema de drenagem.
A soma disso com a falta de recursos para investimentos leva a um cenário conhecido, o dos alagamentos constantes em diversas partes da cidade. Essa condição se soma à problemática das cheias enfrentadas em todo o Estado no mês de maio e acende o alerta para o tratamento que o poder público deve dar a este pilar do saneamento básico.
Para Tucci, que coordenou o projeto de elaboração do Plano Diretor de Drenagem Urbana de Porto Alegre, o momento é oportuno para mudar a percepção sobre os investimentos, priorizando as áreas de amortecimento para a água da chuva ao invés da canalização, que chega a custar até sete vezes mais. Trata-se de “integrar o planejamento urbano e usar esses espaços novos de amortecimento como uma área de integração urbanística”.
Tucci foi professor no Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Ufrgs e hoje está à frente de uma empresa que desenvolve projetos nas áreas recursos hídricos, meteorologia e geotecnia. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, ele comenta o convite para prestar consultoria à prefeitura da Capital.
Jornal do Comércio – O prefeito tem dito da intenção de procurá-lo para prestar uma consultoria. O senhor recebeu esse convite?
Carlos Tucci – Sim. Eu vou fazer um histórico até. Em 2023 fomos contratados pela Prefeitura para fazer a recuperação das estações de bombas, de quanto ia custar a operação e manutenção de drenagem de Porto Alegre e o Capex, o investimento das bacias de drenagem de Porto Alegre. Quando fizemos esse estudo, que terminou um pouco menos de um ano atrás, estimamos que para recuperar todas as bombas daria em torno de R$ 400 milhões.
JC – Das 23 bombas da cidade?
Tucci – Isso, recuperar e deixar elas funcionando. Quando tem uma estação de bomba, tem que ver qual é a vazão de projeto daquela bacia, porque se ela não tiver capacidade, inunda na zona da bomba.
JC – Que é o que estamos vendo.
Tucci – Na realidade, o que estamos vendo é que as bombas não tinham stoplock, que é uma válvula que, quando “pifa” a bomba ou para de bombear, ele fecha.
JC – E aí protege a bomba?
Tucci – Não entra água, que é o que aconteceu. A água entrou pelo encanamento que tinha que sair. Como naquele período (da consultoria anterior) não choveu, não precisava da bomba. Mas, se tivesse o stoplock, que custa na ordem de R$ 100 mil (cada), fecharia tudo. Todo esse conjunto, modernizado, vai funcionar. E esse era o problema de Porto Alegre, porque teve toda a transição dos últimos governos em que não houve manutenção do sistema a ponto de ele poder funcionar de forma adequada.
JC – A Prefeitura desmentiu a acusação de que não houve investimentos no sistema de proteção de cheias apontando os investimentos em drenagem. Pode-se considerar a drenagem como parte do sistema de proteção contra as cheias?
Tucci – É. São duas coisas. Lembra quinta-feira (23 de maio), que começou a sair água ? Saiu porque a chuva foi dentro de Porto Alegre e não conseguia entrar no rio porque estava com pressão maior, então ela saía dentro da cidade. Então precisa dos dois (drenagem e sistema de proteção). Na maior parte do tempo, o problema era do lado de fora, mas quando tem uma chuva dentro de Porto Alegre, o problema é conjunto. Aquela chuva (do dia 23), se não tivesse o rio alto, ninguém ia notar.
JC – Porque conseguiria ter vazão.
Tucci – Então esse é o sistema que que tinha que estar funcionando. Há uma questão também de que grande parte da população achava que não devia ter sistema de proteção.
JC – O muro especialmente, isso?
Tucci – Sim. Isso ajudou na motivação. Porque o muro era o culpado de tudo. Esse processo até tem a ver com isso, da falta de motivação das pessoas pela importância do sistema de proteção. Se você olhar, por exemplo, a Holanda, um terço está abaixo do nível do mar e eles têm diques e estações de bomba. Qual o problema (aqui)? É antigo, esse tipo de dispositivo (de proteção). Você não está fazendo um high tech, uma coisa que deu problema porque faltava um chip. É um equipamento e um processo simples tecnicamente, bastante conhecido. O aeroporto de Amsterdã está a 4 metros abaixo do nível do mar. Você já ouviu falar que ele foi inundado?
JC – Tem uma proposta de refazer aquela parte do sistema de proteção do outro lado do Cais, protegendo também os armazéns e tirando o muro, para integrar o Cais com a cidade. O senhor acredita que teria as mesmas condições de proteger a cidade?
Tucci – O que você precisa é ter garantias de que essa nova obra não seja só um murinho que possa amanhã ser derrubado. Tem que ter função de proteção e ser estruturalmente adequado para proteger nas mesmas cotas que estavam antes. Ou até, como agora se percebe (que o nível chegou a) 5 metros e pouco, provavelmente tenha que altear para ter uma borda livre de 1 metro.
JC – O que seria essa borda livre?
Tucci – Sempre qualquer projeto de vertedor de segurança tem uma variação que, na norma brasileira, é de no mínimo um metro maior, dependendo do sistema. É uma folga que tem nos projetos, principalmente pelo aumento do nível da água, em função do efeito do vento, de uma superfície líquida.
JC – Na gestão do ex-prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB, 2017-2020) havia a intenção de fazer a concessão do Dmae. O prefeito Sebastião Melo (MDB, 2021-atual), quando assumiu, parou o processo e disse que iria conceder somente se a drenagem fosse junto.
Tucci – Pois é. Para você ter uma ideia, uma das poucas cidades do Brasil que tinha drenagem era Porto Alegre. Que tinha.
JC – Não tem mais?
Tucci – É, está com o Dmae. Mas ele recebeu o ônus que não tem recuperação de custo.
JC – O que seria isso?
Tucci – Recuperação de custo é quem paga a conta para você prestar um serviço. Aí o que acontece? A maioria das prefeituras não quer botar (cobrar) taxa de drenagem, que está prevista em lei.
JC – Alguma prefeitura conhecida tem?
Tucci – A única é Santo André (SP). E está com um valor muito baixo que não paga os custos.
JC – Mesmo quando era o DEP Porto Alegre não tinha isso?
Tucci – Não, Porto Alegre não conseguiu porque não conseguiram aprovar a taxa. Então é aquela coisa, pagar você paga. Você está pagando em prejuízo, sendo que poderia pagar em serviço. E (a taxa) só paga a operação da limpeza, não paga investimento. Essa taxa, que em Porto Alegre seria assim, de uns R$ 35,00 a R$ 40,00 por propriedade por mês, não paga investimento. Para investimento vai ter que conseguir dinheiro federal ou empréstimos e vai ter que sair do orçamento de alguma forma.
JC – Mas hoje sequer para manutenção se paga. A prefeitura não tem dado conta de fazer?
Tucci – É, a prefeitura faz de acordo… Eu não sei como está o orçamento do Dmae, mas falta muito dinheiro. No nosso estudo estimamos em torno de R$ 200 milhões por ano, e era bem menos o que eles estavam gastando. E também tem um custo de operação e manutenção das bombas. Tudo isso tem que estar nessa conta. Então estamos pagando em prejuízo.
JC – Fora épocas como essa de chuva em excesso, tem regiões da cidade que sempre alagam, por exemplo o 4º Distrito, a Cidade Baixa. Mesmo quando o resto da cidade não é tão atingindo, o Sarandi e as Ilhas acabam alagando. O que da drenagem urbana justifica esses alagamentos pontuais?
Tucci – O que é da drenagem urbana é tudo muito rápido, mas inunda. Por isso que precisa desses R$ 4 bilhões (investimento estimado para resolver todos os alagamentos da cidade). Quando foi feito o Plano Diretor de Drenagem Urbana, já tinha uma definição de 27 bacias hidrográficas (na cidade), mas na época fizemos só seis bacias. Uma delas é o arroio Areia, que está em fase final. E ao longo do tempo, a prefeitura foi licitando os trabalhos e fez (os estudos) de todas as 27 bacias. Então tem o plano, algumas precisam ser atualizadas, mas tem o plano para resolver. O que se faz de um trabalho desse? Vê todos os pontos de alagamento, além de levantar os dados de alagamentos recentes, e simula tudo isso. E depois estuda alternativas do que fazer para amortecer, ou aumentar condutos, para evitar que (o alagamento) ocorra para um risco de 10 anos, 10% de chance. Porque geralmente o risco de 10 anos é o ponto ótimo econômico entre o benefício e o custo. Então tem esse plano para toda a cidade, só que R$ 4 bilhões não é todo dia que você tem para fazer, então isso vai sendo feito aos poucos. O Areia está sendo terminado dentro dessa linha de investimento. Para você ter uma ideia, no Areia se usou fundamentalmente amortecimento. O (custo do) amortecimento geralmente é um para sete em relação à canalização. Se gasta sete vezes mais com canalização. Você precisa da ordem de 1% da área da bacia em amortecimento para custar 1/7 da canalização. Canalização, em algum lugar tem que amortecer aquela água. Só que vai transferindo e vai ficando cada vez mais caro.
JC – Amortecimento são aquelas bacias onde se acumula água até ter condição de dar vazão, isso? Quadras, praças, áreas verdes…
Tucci – Isso, ou também pode aumentar a infiltração.
JC – Seria o quê, uma área não construída?
Tucci – Tem vários mecanismos, se você caminha na rua presta atenção, pensa: “Por que a água tem que ir toda ela para o bueiro? Ela não poderia entrar nas áreas verdes e infiltrar?”. Aí as áreas verdes estão todas altas. O que tem que fazer? Quebrar aquilo, fazer com que a água entre nos gramados. Já reduz uma grande quantidade de água que vai tudo para a drenagem e vai gerar problemas. E tem mecanismos de incentivos econômicos, por isso que põe a taxa. Por exemplo, se você botar uma taxa de drenagem, tem como dar incentivos. Por exemplo, cidades como Chicago, Filadélfia e outras, têm um mercado de armazenamento. O que é isso? Na sua propriedade você fez o armazenamento (da água da chuva), mas fez a mais. Aí se alguém precisar e não conseguir fazer na propriedade dele, você vende aquele a mais que você tem. É um crédito de armazenamento.
JC – O senhor mencionou a relação do planejamento hídrico com o planejamento urbano. Hoje temos cidades já consolidadas, como é o caso de Porto Alegre, e mesmo nesses outros lugares (atingidos pelas cheias), que eram centros urbanos consolidados, mas muito próximos da beira do rio.
Tucci – E tem aí uma grande oportunidade de mudar a cidade. Cidade verde, por exemplo. Porque na drenagem urbana, se você fizer amortecimento, custa 1/7 do que fazer canalização. Todo mundo quer espremer a infraestrutura de água para poder ocupar mais a cidade. Agora, se você mudar um pouco desse panorama, integrar o planejamento urbano e usar esses espaços novos de amortecimento como uma área de integração urbanística, de esgoto, de lixo, de drenagem, e fizer um projeto integrado, vai mudar a cidade. Porque se você fala assim, “Ah, não tem mais espaço para fazer amortecimento”. Mas, entre um milhão de dólares por quilômetro quadrado e sete milhões de dólares, na diferença dos seis eu não compro qualquer área para fazer um amortecimento? E eu preciso de 1% da área. É vontade de integrar, mas aí você tem vários atores que tem que integrar, não é só o município. E o município tem que fazer o seguinte, quando você vai atuar sobre uma área, todo mundo tem que trabalhar junto. Ah, mas aí o outro é do esgoto, o outro é da água… Nisso ninguém se conversa. Eu sempre faço essa analogia: você está na UTI, tem quatro médicos te tratando, nenhum conversa com o outro, qual a tua chance? É o que precisamos então, dessa visão integrada da cidade, aí nós transformamos a cidade.
JC – E o senhor acredita que agora é um momento oportuno para esse debate social?
Tucci – É, para convencer as pessoas disso. Eu trabalhei já em um projeto desse em Teresina (PI), o Lagoas do Norte. Conseguimos fazer muita coisa. O que não conseguimos, no final, foi por problemas de invasão social.
JC – É um setor que a prefeitura precisa colocar no diálogo.
Tucci – Claro, nele entram vias, energia, transporte, saneamento… Tem três fases. Primeira é uma fase da infraestrutura, onde você constrói a infraestrutura sustentável de água, esgoto, drenagem e resíduos sólidos de forma integrada no mesmo espaço, reassentamento, se for o caso, vias, todo o conjunto de infraestrutura. Aí vem a fase de amenidades, junto com essa, que são os parques, as escolas ligadas aos parques, os museus, tudo ligado a essa infraestrutura. E a terceira fase é a operação urbana consorciada, que você valoriza e traz valor para aquela área que paga os impostos.
JC – Sobre a proposta da prefeitura, chegou a fechar?
Tucci – Não, a gente fez a proposta, estamos aguardando o resultado da avaliação da prefeitura.