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Histórias de um verão de cinema

Histórias de um verão de cinema


Era dezembro de 1978 e Uruguaiana vivia mais um verão muito quente, com os termômetros superando os 30 ºC logo pela manhã. Começava mais um verão típico na maior cidade da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, e também chegava a hora de os moradores decidirem como enfrentar o calor. A maioria ficava em casa, por falta de tempo ou dinheiro para viajar. Já alguns poucos encaravam mais de 600 quilômetros de estrada rumo a Porto Alegre ou ao Litoral. No caminho, cruzavam com a peregrinação anual de conterrâneos, a maior parte estudantes universitários, de volta para passar as festas de fim de ano com suas famílias. Para estes que retornavam e aqueles que não tinham como sair, não eram muitas as opções de lazer.

Depois do Réveillon, o aquecimento das escolas de samba da cidade e a temporada de bailes de Carnaval ditariam o ritmo da estação para os 90 mil habitantes pelo menos até março. Era diversão garantida, mas com hora e data para acabar. Por isso, os jovens uruguaianenses corriam atrás de lampejos de diversão. Valia visitar amigos, frequentar bares e clubes, levantar as mãos aos céus caso conhecessem alguém com piscina em casa. No fim de semana, atravessavam a ponte sobre o Rio Uruguai para comprar os melhores vinhos e alfajores que só a vizinha Paso de Los Libres poderia proporcionar. Na aduana, passavam pela fila de automóveis argentinos abarrotados de parentes e bagagens aguardando a liberação para seguir viagem rumo às praias de Santa Catarina. O vai-e-vem em Uruguaiana é incessante, mas previsível: são sempre os mesmos que chegam, ficam ou partem. Por isso, tamanha a surpresa quando visitas inesperadas surgem, vindas de longe.

Logo menos, sob o sol escaldante, uma equipe de cinema posicionaria tripés e microfones nos campos afastados da zona rural. Atores e técnicos circulariam pela cidade conhecendo a vida social fronteiriça, fazendo amizades e levando uma animação diferente aos lugares que os jovens batiam ponto de tanto frequentar. Enquanto isso, alguns moradores receberiam um convite tentador para participar daquele bochincho. Pouco a pouco, a monotonia dava lugar à efervescência cultural e, em meio à vastidão do pampa, começavam as gravações do filme A Intrusa.

História de violência, tradição e isolamento ambientada em 1897, A Intrusa é uma das produções mais ousadas a serem rodadas no Rio Grande do Sul. Dirigido pelo binacional argentino-brasileiro Carlos Hugo Christensen, o filme era alheio a rivalidades de fronteira ao contar uma história legitimamente pampeana. O roteiro era adaptado de um conto de Jorge Luis Borges, um dos mais importantes autores da língua espanhola, e a trilha era assinada por Astor Piazzolla, bandoneonista que revolucionou o tango e a milonga. Do lado de cá do rio Uruguai, três jovens atores estreavam como protagonistas: José de Abreu e Arlindo Barreto como Cristiano e Eduardo Nilsen, dois irmãos muito unidos que causavam medo e fascínio na região, e Maria Zilda Bethlem como Juliana Burgos, a mulher silenciosa que causa uma ruptura na relação fraterna.

Na trama, o frio do inverno acompanhava os irmãos na lida com o campo, nas rinhas de galo no bar e na venda de cavalos roubados, e o vento minuano soprava o suspense do que estava por vir. No set de filmagem, as altas temperaturas castigavam os atores sempre em indumentária. “Era um calor infernal”, relembra Maria Zilda Bethlem, que teve em A Intrusa seu primeiro papel de destaque. “Eu usava casaco, os meninos usavam aqueles ponchos quentes com bombacha e chapéu. Era uma barra pesada”.

Uruguaiana é a cidade com maior amplitude térmica no Brasil, e a sombra é pouca: nas mais de 3 mil espécies da flora do pampa, predominam plantas campeiras baixas. Para a sorte de todos os envolvidos nas filmagens, a produção encontrou um campo com dois umbus, e no meio do caminho entre eles foi erguido o cenário principal, a casa dos irmãos Nilsen. “A gente saía do hotelzinho, entrava na Kombi e ia para lá, e passávamos o dia inteiro. A comida vinha e a gente comia ali, cada um procurando uma sombrinha”, conta Maria Zilda.

Ao longo daquele verão extraordinário, Carlos Hugo Christensen e sua equipe gravaram um longa-metragem que foi premiado nos festivais no Brasil e no exterior, lançou os atores principais ao estrelato e transformou Uruguaiana, pago solitário na porteira do Brasil, em um lugar de grandes histórias.

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Maria Zilda Bethlem, uma intrusa silenciosa

Maria Zilda Bethlem ganhou projeção com a silenciosa Juliana de A Intrusa

Maria Zilda Bethlem ganhou projeção com a silenciosa Juliana de A Intrusa


/FACEBOOK RETROSPECTIVA CHC/DIVULGAÇÃO/JC

Conhecida nacionalmente pelo trabalho em novelas como Bebê a Bordo (1988) e Por Amor (1997) e nos filmes Vagas para Moças de Fino Trato (1993) e Eu Não Conhecia Tururú (2000), Maria Zilda Bethlem estava em busca de um desafio quando A Intrusa apareceu no horizonte.

Com experiência nos palcos e bacharelado em Ciências Políticas, Maria Zilda trabalhava na área cultural do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral). O sonho de se dedicar totalmente à carreira de atriz estava em pausa, e o foco era o sustento para si e seu filho. A arte, contudo, não deixou seu cotidiano: todo dia, Maria Zilda convivia com novos colegas/amigos, profissionais da música, literatura, rádio, teatro e cinema. Através desses novos contatos, soube que o diretor Carlos Hugo Christensen procurava uma protagonista para sua adaptação do conto A Intrusa, de Jorge Luis Borges. Movida por um sonho, ela conseguiu uma reunião com o diretor, e o conquistou: ao fim da conversa, saiu contratada.

Aceitar a proposta significava também assumir o compromisso de deixar o Rio de Janeiro e se estabelecer em Uruguaiana durante as gravações. Por isso, pediu demissão do Mobral para seguir sua vontade. Ela também tinha o desafio familiar, e contou com o apoio de Christensen. “Queria muito fazer o filme, mas estava com meu coração miudinho porque era a primeira vez que eu deixava meu filho sozinho por tanto tempo, e o Christensen falou que ia tentar fazer o melhor por mim”, confidencia. O diretor organizou o esquema de gravações juntando todas as suas cenas para que ela pudesse retornar ao Rio de Janeiro em três semanas.

Além de uma rotina corrida, Maria Zilda Bethlem tinha uma personagem desafiadora em Juliana Burgos, protagonista que sofria todos seus horrores em silêncio e falava apenas duas frases durante o filme inteiro. “Tinha que fazer tudo passar pela expressão do rosto e pela postura, mas naquela justa medida, assim como caminhar num fio de navalha, para que não ficasse exagerado e nem que se deixasse de ficar nítido a dor e o sofrimento que aquela mulher sentia”, explica a atriz.

No mundo de homens violentos de A Intrusa, Juliana é uma mulher confinada ao serviço e ao silêncio. Ela é adquirida no bordel local e levada à casa dos irmãos Nilsen por Cristiano, e sua existência causa discórdia entre os irmãos. Eduardo é distante e não gosta de Juliana, mas se aproxima quando seu irmão vai a uma campereada e permite que ele a “use”. A personagem é submissa a todos os mandos dos irmãos, mas sua presença quieta leva a casa dos Nilsen à ebulição.

“Eles tinham uma relação de dois irmãos unidos que moravam sós, trabalhavam e de noite iam para o puteiro para poder beber, transar e viver o cotidiano deles, sem nenhum motivo de discórdia. No entanto, a Juliana desperta neles um sentimento que não conheciam, que é o ciúme, a posse. Afinal de contas, de quem é ela? É minha ou sua?”, reflete Maria Zilda. Sem que os irmãos percebam, a balança de poder começa a oscilar.

A Intrusa foi um divisor de águas profissional: sua atuação lhe rendeu elogios, o prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema de Montreal e abriu as portas para novas oportunidades profissionais, em uma carreira de mais de cinco décadas dedicadas à cultura. “Quando alguém me pergunta quais as coisas mais importantes que eu fiz, sempre falo de A Intrusa”, diz Maria Zilda. “Foi uma honra fazer uma personagem do Jorge Luis Borges. Não é para qualquer um.”

Elenco

Arlindo Barreto (dir) e José de Abreu, em imagem de divulgação de A Intrusa

Arlindo Barreto (dir) e José de Abreu, em imagem de divulgação de A Intrusa


/DOSSIÊ FILMES BRASILEIROS/ARQUIVO FUNARTE/DIVULGAÇÃO/JC

Carlos Hugo Christensen tinha uma visão específica de atores altos e loiros para interpretar Cristiano e Eduardo Nilsen, dois irmãos de ascendência dinamarquesa sem muita ideia de como vieram parar no meio do pampa.

José de Abreu foi o escolhido para interpretar Cristiano, o mais velho. Na época das filmagens, o ator morava em Porto Alegre com a então esposa, a diretora de teatro Nara Keiserman, e conciliava a carreira nos palcos com a produção de espetáculos. O sucesso na jornada dupla projetou Zé na cena artística gaúcha, e o colocou no radar de Christensen. O irmão mais novo, Eduardo, era o personagem de Arlindo Barreto, que chamou a atenção do diretor por atender exatamente ao que ele buscava sob o ponto de vista estético – uma versão mais suave do irmão mais velho e bruto.

Entre o bolicho, o prostíbulo, a casa e a lida do campo, os Nilsen interagiam com conterrâneos interpretados por pessoas locais: os colegas de trago, as “chinas” e outros personagens peculiares eram todos moradores de Uruguaiana. Os cineteatros de rua da cidade estavam fechando e sendo substituídos pela televisão, então a oportunidade veio a resgate para quem queria fugir do tédio e viver uma história de cinema.

Liberação das filmagens

Dias antes do início das gravações de A Intrusa, enquanto estava em casa terminando os preparativos para a viagem, Maria Zilda recebeu uma ligação de Christensen, com um pedido a fazer. “Ele me perguntou ‘você tem amizade com um parente seu chamado Fernando Bethlem?’. Eu falei ‘não, eu sei que ele é primo da minha mãe’, e ele disse ‘pois é, é que nós estamos tendo problemas com a filmagem”.

Christensen explicou que autoridades locais do Exército acreditavam que A Intrusa era uma obra política crítica ao regime militar, algo que até hoje confunde a atriz. “O filme era baseado no conto do Borges, que de comunista não tinha nada”, observa Maria Zilda. “Não tinha porque eles acharem que era um filme de esquerda”.

Para entender o problema e esclarecer essa situação, ela ligou para o primo Fernando Belfort Bethlem, ministro do Exército Brasileiro no governo de Ernesto Geisel. General linha-dura, ele conhecia a Fronteira Oeste de perto: no começo da carreira, serviu como tenente no 8º Regimento de Cavalaria Independente de Uruguaiana.

Belfort Bethlem se informou sobre o caso e retornou explicando que a proibição ocorreu porque o filme era “amoral e politicamente duvidoso”. Em resposta, Maria Zilda propôs que ele lesse o roteiro, ressaltando que A Intrusa não era uma pornochanchada e sua base era um conto do notório direitista Borges, argumentando que impedir uma produção pronta para as filmagens seria injustiça, independente de sua presença no elenco. Ela enviou o texto, e em poucos dias a autorização veio. “Acho que é por isso que o Christensen gostava de mim”, ri a atriz.

Antes de pedir para que Maria Zilda convencesse o chefe máximo do Exército Brasileiro de que A Intrusa não era um filme comunista, Carlos Hugo Christensen primeiro precisou vencer a relutância de Jorge Luis Borges. O escritor tinha uma relação conflituosa com o filme desde a sua concepção: outras versões cinematográficas de suas obras não o agradaram, e essa era uma da série de ressalvas que o escritor tinha para uma adaptação do conto, publicado originalmente no livro O Informe de Brodie (1970). Quando Borges se sentiu assegurado de que a adaptação estava em mãos confiáveis, a autorização aconteceu.

Câmeras no pampa

Carlos Christensen (em foto de 1961) se negou a cortar cenas polêmicas

Carlos Christensen (em foto de 1961) se negou a cortar cenas polêmicas


/FUNDO CORREIO DA MANHÃ/ARQUIVO NACIONAL/DIVULGAÇÃO/JC

A liberação do Exército para A Intrusa deu início a uma nova fase nas filmagens. Para ajudar na caracterização correta, o diretor contou com o conhecimento do folclorista Ubirajara Raffo Constant, que inseriu elementos nativos nos diálogos e ajudou a planejar cenários e figurinos de acordo com as tradições da época.

A casa dos irmãos Nilsen foi projetada por Raffo Constant com base em desenhos antigos de moradias do fim do século XIX. Havia uma preocupação da equipe para que duas modernidades nunca aparecessem no horizonte: cercas de arame farpado e eucaliptos, que recém haviam chegado ao Brasil e não eram popularizados na fronteira. Também houve uma atenção especial com os animais, pois no século XIX só existiam ovelhas pretas nativas da região, diferente da realidade dos anos 1970; o gado da época em que se passa o longa também não era o mesmo atual.

Outros contratempos que surgiram no set eram solucionados com a ajuda da comunidade uruguaianense, como, por exemplo, uma cena na qual Eduardo (Arlindo Barreto) protegia o irmão Cristiano (José de Abreu) de um ataque de serpente. Para isso, se aguardava a chegada de uma cobra cruzeiro, sob os cuidados de uma especialista do Instituto Butantan de São Paulo, mas nenhuma apareceu. A produção solucionou o problema com um anúncio nas rádios locais, solicitando ajuda para encontrar uma cobra semelhante. Em pouco tempo, um ouvinte corajoso atendeu ao pedido.

Outro improviso, este uma superprodução, foi a recriação do vento minuano, que sopra mais forte e assustador à medida em que cresce a tensão entre Juliana e os irmãos, com a abertura de uma pista improvisada no meio do campo para acomodar o pouso de dois aviões que geravam vento com suas hélices.

Sopros do minuano

Quase todos os outros aspectos da produção causaram alguma dor de cabeça, mas ao menos uma parte fundamental aconteceu com leveza, só para variar: a parceria do diretor com o músico Astor Piazzolla. A ideia para a trilha surgiu enquanto ambos caminhavam no centro do Rio de Janeiro, e o músico repentinamente perguntou onde encontrar o piano mais próximo. Christensen o levou até o auditório da Fundação Nacional de Artes: Piazzolla sentou-se ao instrumento e ali mesmo compôs a música-tema.

O filme também contou com a colaboração local de músicos consagrados, como Mário Barbará Dornelles musicando a Milonga de João Iberra, escrita por Borges, e Ubirajara Raffo Constant letrando a melodia da Canção do Amanhecer de Piazzolla. No filme também se ouve a música Baile de Rancho, composição de Telmo de Lima Freitas, interpretada por Miguel Barbará.

Estreia

Pôster de A Intrusa; obra foi bem recebida na época, mas hoje está quase esquecida

Pôster de A Intrusa; obra foi bem recebida na época, mas hoje está quase esquecida


/FUNARTE/DIVULGAÇÃO/JC

O filme estreou oficialmente no Rio Grande do Sul no 8º Festival de Gramado em março de 1980 com aclamação de público e crítica, e venceu quatro Kikitos: melhor diretor, melhor trilha sonora, melhor ator para José de Abreu e melhor fotografia para Antônio Gonçalves. O filme ficou quase dois meses em cartaz em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, e depois seguiu para outras oito capitais brasileiras.

Em paralelo ao sucesso, ou talvez em decorrência dele, A Intrusa veio acompanhado de controvérsia. As cenas de erotismo em A Intrusa, somada à indicação de uma ligação profana entre os irmãos Nilsen, não tardaram a causar polêmicas. Na Argentina, a estreia foi suspensa porque Christensen se negou a cortar as cenas mais polêmicas como exigia a ditadura militar. A situação não era nova para o diretor, que acumulava embates sobre moralidade desde o início de sua carreira com a Casa Rosada, no primeiro governo de Juan Domingo Perón. Em retorno, Christensen e Piazzolla denunciaram a censura com uma campanha pela liberdade de expressão.

A mobilização tinha uma ausência notória no indignado Jorge Luis Borges, que depois de tanto relutar em autorizar a filmagem teve seus medos concretizados. O escritor, crítico contumaz das repressões à arte, não deixava dúvidas sobre a exceção que abriria a si mesmo ao assinar o artigo Sí a la Censura, marcando posição contra o tom explícito e dos rumos da adaptação, que chamou de “pornográfica”. Borges perdeu a batalha, e o filme foi um sucesso estrondoso: de acordo com jornais argentinos, foram 22.198 espectadores no primeiro dia de exibições em Buenos Aires.

Para o cineasta, psicanalista e filósofo Afrânio Vital, que foi aprendiz de Carlos Hugo Christensen, A Intrusa é um filme enigmático, mas fiel ao estilo do escritor argentino. “Por ser um conto de Borges, é semelhante a uma fábula, com um começo, meio e um fim que amarra tudo em um ensinamento”, diz Vital. “Christensen aborda a tragédia, no sentido grego do termo, de uma forma realista, o que assusta ainda mais a todos nós, tendo assustado até Borges, que se recusou a reconhecer seu conto no filme”.

A Intrusa, 45 anos depois

Outrora sucesso de público e crítica, A Intrusa hoje é um filme ostracizado, como tantas produções cinematográficas de sua época. A obra é acessível ao público apenas em péssima resolução no YouTube e em raras exibições especiais. Quem tiver interesse em assistir A Intrusa e tolerar a baixa qualidade da imagem pode perceber o valor técnico e artístico no filme, e ter a expectativa de um dia ver a obra respeitada e restaurada. Para o outrora pupilo Afrânio Vital, A Intrusa leva a ousadia do seu mentor Christensen ao máximo: “É um filme muito adiantado para seu tempo e até para hoje”.

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Fonte: Jornal do Comércio

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