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Todo o tumulto provocado por Donald Trump no comércio internacional—com a escalada do protecionismo e seus efeitos negativos sobre as exportações brasileiras e de inúmeros outros países—tem um objetivo central: intensificar o cerco econômico e, sobretudo, tecnológico à China, ao mesmo tempo em que busca reinternalizar a indústria dos EUA, deslocada há décadas para o país asiático. Essa é a leitura de diversos analistas.
Para Washington, enfraquecer a China enquanto restaura a força industrial americana seria uma estratégia de duplo benefício. No entanto, há um risco embutido: se as restrições acelerarem ainda mais o notável avanço tecnológico chinês — há anos líder na corrida mundial de patentes, entre outros indicadores —, os EUA podem acabar provocando exatamente o efeito oposto ao desejado. Esse alerta vem do renomado economista Barry Eichengreen, professor da Universidade da Califórnia, Berkeley, ex-assessor sênior do FMI e autor de diversos livros de referência, como In Defense of Public Debt. Ele abordou o tema em artigo publicado no site Project Syndicate.
Nos últimos meses de seu governo, destaca Eichengreen, Joe Biden endureceu as restrições às exportações de semicondutores avançados dos EUA para a China—tecnologia essencial para a inteligência artificial generativa e supercomputadores utilizados tanto em sistemas de armas e ciberataques quanto no fortalecimento da competitividade das big techs chinesas. Além disso, Biden ampliou a lista de itens proibidos, incluindo chips de memória de alta largura de banda e ferramentas de fabricação de semicondutores. Agora, com a possível volta de Trump à Casa Branca, a tendência é de um endurecimento ainda maior dessas medidas, impulsionado pelo setor mais radical da política americana.
A China reagiu com restrições à exportação de terras raras e materiais essenciais para a indústria dos EUA. Mas, segundo Eichengreen, a resposta mais significativa de Pequim pode estar na aceleração do desenvolvimento de sua própria capacidade de projetar e fabricar semicondutores. “Se a China reduzir essa defasagem tecnológica mais rápido do que teria feito naturalmente, os controles americanos terão sido não apenas ineficazes, mas potencialmente contraproducentes”, adverte o economista.
Para ilustrar os desafios dessa estratégia, Eichengreen resgata um episódio da Guerra Fria: a tensão entre França e Estados Unidos nos anos 1960.
Na época, crescia a preocupação de que a França se tornasse economicamente subordinada aos EUA, em meio à expansão das multinacionais americanas na Europa. Um exemplo foi a aquisição da francesa Machines Bull pela General Electric, em 1964. Paralelamente, o presidente Charles de Gaulle se opunha à hegemonia dos EUA na OTAN e se recusava a submeter as forças francesas ao comando conjunto da aliança. A ruptura culminou na retirada da França do comando militar integrado da OTAN.
Em resposta, os EUA bloquearam a exportação de computadores avançados da IBM e da Control Data Corporation para a Comissão Francesa de Energia Atômica. Temia-se que essas máquinas, capazes de realizar cálculos complexos, ajudassem Paris a desenvolver uma bomba de hidrogênio—capacidade então restrita a EUA e União Soviética. Além disso, a engenharia reversa desses equipamentos poderia fortalecer a nascente indústria de informática francesa, atenuando o impacto da aquisição da Bull.
A resposta do governo francês foi lançar, em 1966, o Plano Calcul, um programa de investimento no setor de tecnologia computacional, equivalente hoje a 1,5 bilhão de euros. Metade dos recursos veio do Estado, por meio de subsídios à pesquisa, e a outra metade, das próprias empresas. O plano incluiu empréstimos subsidiados, garantias públicas e a fusão de duas empresas para criar um campeão nacional: a Compagnie Internationale pour l’Informatique.
O Plano Calcul fracassou, mas, segundo Eichengreen, não por causa do bloqueio americano. “As informações fluíam livremente entre as fábricas da IBM nos EUA e na França, permitindo que cientistas locais acessassem dados estratégicos. Quando os computadores mais modernos não estavam disponíveis, os franceses conseguiam substituí-los por versões anteriores”, explica o economista.
No fim, os controles de exportação apenas atrasaram, sem impedir, o desfecho geoestratégico esperado. Em agosto de 1968, a França testou com sucesso sua primeira bomba de hidrogênio na Polinésia Francesa, consolidando sua independência militar. “Talvez os novos bloqueios americanos sejam mais eficazes”, pondera Eichengreen. “Mas já temos um primeiro indício de que podem não ser—o DeepSeek.”