Com leilão previsto para ocorrer em 29 de fevereiro, a parceria público-privada (PPP) do Trem Intercidades (TIC) – que vai ligar São Paulo a Campinas, com investimentos de R$ 13,5 bilhões em 30 anos de contrato – está chamando a atenção por dois motivos.
Um é a complexidade do empreendimento, previsto para ser entregue em duas etapas, em 2029 e 2031. O outro é o modelo de contrato, considerado inovador, por prever várias travas para mitigar riscos e assegurar segurança jurídica ao investidor.
Uma das novidades apontadas por especialistas ouvidos pelo NeoFeed, que foi elogiada, é a criação de um comitê conhecido como DB (Dispute Board). Basicamente, ele funciona como uma câmara de arbitragem para mediar conflitos entre as partes.
Comum em contratos privados, o DB ainda é pouco usado em obras públicas, como na construção dos estádios da Copa do Mundo de 2014 e na Linha 4 do Metrô de São Paulo.
Ao se analisar em detalhes a PPP do Trem Intercidades, os cuidados extras são justificados. O projeto envolve dois serviços diferentes: uma linha expressa entre São Paulo e Campinas, com velocidade média de 95 km/h e parada em Jundiaí, e outra intermunicipal, mais lenta, com escalas extras em Louveira, Vinhedo e Valinhos, além de Jundiaí.
Para viabilizar a PPP, o edital prevê também concessão da linha 7-Rubi da CPTM, já em operação entre o centro da capital e Jundiaí, e uma extensão da linha férrea até Campinas, que ainda vai ser construída. Além disso, o projeto envolve a participação da MRS, concessionária federal que divide com a CPTM uma linha de carga entre São Paulo e Jundiaí.
Numa solução inédita envolvendo contratos públicos, foi criada uma espécie de “concessão cruzada” dentro do contrato da PPP, por meio da qual a MRS usará os investimentos firmados com o governo federal em 2022, por conta da renovação antecipada de sua concessão, para construir uma nova linha férrea entre a capital e Jundiaí.
Com a obra, a atual linha de carga utilizada pela concessionária será usada futuramente para o transporte de passageiros no trecho entre Jundiaí e São Paulo.
Com tantas condicionantes, a versão final do contrato a ser assinado entre o governo estadual e o vencedor do leilão ficou extensa, sem contar os anexos, para oferecer garantias aos interessados em participar da concorrência.
Para Frederico Favacho, sócio do escritório Santos Neto Advogados e especialista em infraestrutura, o contrato extenso reflete o desafio imposto pelo empreendimento, que prevê uma PPP para construir uma linha férrea e operar um novo serviço.
“Além disso, não é uma tarefa simples para o governo estadual mexer no contrato em andamento com uma concessionária federal, assumindo a responsabilidade perante o vencedor do leilão”, diz Favacho.
Inovações
Luis Fernando Zenid, sócio nas áreas da construção e infraestrutura do escritório Donelli, Abreu Sodré e Nicolai Advogados, diz que o modelo da PPP é robusto, do ponto de vista técnico. Entre as novidades incluídas no edital, Zenid destaca o estabelecimento do DB, um comitê independente de notáveis formado por especialistas em obras (dois engenheiros e um advogado com expertise em contratos), considerado padrão em empreendimentos privados.
O especialista ressalta que o DB terá poder de dar uma solução rápida para disputas mais simples envolvendo aspectos do contrato.
“Muitas vezes os projetos param por causa de questões pequenas que não são resolvidas no momento certo e se tornam grandes, o que gera atrasos e pedidos de reequilíbrio de contrato”, diz ele.
O objetivo, segundo Zenid, é evitar o pesadelo que marcou a última década de concessões e obras públicas – contratos suspensos e judicialização por conta de conflitos entre os entes públicos e privados, responsáveis por boa parte das mais de 8 mil obras paradas no País.
“O edital da PPP traz ferramentas, como o DB, justamente para que os diversos players dialoguem para evitar conflitos”, afirma o especialista.
Favacho, do escritório Santos Neto Advogados, também elogia a inclusão do DB no contrato. Mas aponta outros pontos que exigem atenção, como a previsão do aporte inicial e do repasse anual do governo estadual ao vencedor da concorrência – vence o leilão quem exigir menor aporte e oferecer mais descontos.
“A rigor, não é possível saber se o contrato será equilibrado, o que vai exigir do parceiro interessado um cálculo do risco”, diz Favacho, citando, entre outros pontos, a dúvida de quanto será o fluxo de passageiros do serviço expresso São Paulo-Campinas.
Segundo ele, apesar de vários estudos e audiências púbicas realizadas, há uma margem de risco elevada que atrapalha o cálculo final, referindo-se à questão do valor-limite da tarifa do trem expresso (definido em R$ 64).
“Esse balanço fino é o grande desafio dessa PPP: o governo estadual não quer garantir a margem do operador, senão o risco é todo do poder público e não do ator privado”, diz.
Os dois especialistas, porém, afirmam que o modelo de PPP do Trem Intercidades pode servir de inspiração para concessões e outros contratos públicos de infraestrutura de longo prazo.
“É uma tendência, independentemente do governante, as modelagens de contratos públicos de longa duração no Brasil vêm sendo aprimoradas e ganhando respeito internacional”, elogia Zenid.
Para Favacho, a PPP é hoje o modelo mais moderno para contratos públicos de infraestrutura. “Além de oferecer vários formatos – construir e operar, como o TIC, ou só construir ou só operar o serviço -, a vantagem da PPP é a divisão de riscos entre os dois parceiros, o público e o privado.”